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As canções de Coutinho

13 de outubro de 2023

“É uma história bonita, triste. Mas é a história da minha vida”, diz Maria Aparecida, introduzindo seu relato autobiográfico. Sentada numa cadeira preta posicionada num palco, com cortinas igualmente pretas ao fundo, ela conta a sofrida história: uma gravidez quando ainda era jovem, seguida pela rejeição dos pais e uma alienação parental que quase a levou a matar a filha e cometer suicídio em sequência – até entrar em cena o homem que seria seu futuro marido. Foi um encontro casual no vagão do trem, que evoluiu para o amor da vida, resultando em um casamento de mais de 50 anos. “Eu sempre falo pra ele: não precisa você me amar não, bem. Meu amor dá pra nós dois, e ainda tem sobra. Eu amo demais esse homem. Se eu puder dar minha última gota de sangue por ele, eu dou. E se eu tiver que morrer por ele, eu vou morrer. E vou morrer satisfeitíssima.” Entre metáforas de morte e um amor sem bordas, uma história bonita, triste, que culmina com dona Aparecida cantando os versos do bolero “Perfídia”: “Sofre a tua dor resignadamente”.

Além de Maria Aparecida, dezenas de outras pessoas sentam-se na cadeira de As canções e cantam músicas que marcaram suas vidas, narrando as memórias inesquecíveis que tiveram o citado som como trilha sonora. São histórias de nostalgias, desilusões, superações, erros, desencontros, alegrias, saudades, fantasias e tragédias. Mas, sobretudo, histórias de amor, tristes, bonitas, como descreve dona Aparecida. No filme, as músicas não são um mero pano de fundo. Elas indicam maneiras de inventar uma cultura sentimental, construindo um imaginário coletivo de como sentir o amor – e, claro, do que é sofrer. Os versos e as vozes de Roberto Carlos (o mais citado), Waldick Soriano, Maria Bethânia, Agostinho dos Santos, Noel Rosa, Aracy de Almeida, Silvinho, Tom Jobim e Jorge Ben são a espinha dorsal dos modos de experimentar o arrebatamento das paixões.

A canção parece expressar algo que não seria possível no mundo cotidiano, alguma coisa que somente a fala não é capaz de incorporar. Um dos personagens do filme conta que, quando sua esposa faleceu, ele se despediu da mulher e “pediu para ela ficar longe”. Por trás das câmeras, Eduardo Coutinho indaga: “Como é pedir para alguém que morreu ficar longe?”. Ele não responde diretamente. Em vez disso, canta os versos de uma música, com letra feita por ele mesmo. A música é a resposta e também a marca de um sentimento ambíguo, a insistência de uma memória, a cicatriz de uma mágoa, o fundo indizível da experiência.

Detalhe do cartaz do filme As canções, de Eduardo Coutinho

 

À primeira vista, As canções não demonstra o experimentalismo radical de outros trabalhos de Coutinho – como Jogo de cena (em que as fronteiras entre a ficção e o documental são tensionadas até o limite), Um dia na vida (feito inteiramente com imagens da TV aberta brasileira, simulando a programação de um dia inteiro) ou O fim e o princípio (um filme feito do zero, sem pesquisa prévia, locação ou personagens estabelecidos). A assinatura do diretor faz-se notável, sutilmente, no método de seleção de personagens, na condução de entrevistas e no trabalho de montagem.

Coutinho anunciou em jornais e espalhou panfletos pela rua com a pergunta: “Qual a música da sua vida?”. Dezenas de pessoas entraram em contato, mostrando-se interessadas em conversar a respeito. Após uma conversa inicial, mais de 40 homens e mulheres se sentaram para uma entrevista com o diretor. Desses, cerca da metade entrou para o corte final do filme. Cada um se senta diante da câmera e conta sua história tendo a música como mote inicial. O diretor, no entanto, explora também detalhes preciosos, como os momentos em que as pessoas se levantam e continuam em cena, às vezes se despedindo – como é o caso do comandante Barbosa e sua saída triunfal cantando "A volta do boêmio". Assim, Coutinho aponta para como as pessoas comuns também fabulam e encenam discretamente as suas próprias biografias e constroem suas autoimagens. A escolha de não incluir trilha sonora também é oportuna, revelando as diferentes expressões faciais de cada personagem, alguns mais convictos e entregues, outros mais tímidos, recatados, por vezes inseguros.

Além disso, há também o modo de entrevistar. Coutinho consegue ser atencioso e paciente, mas também direto e sem meias palavras ao fazer perguntas delicadas. Aos poucos, os personagens vão se abrindo em suas camadas mais profundas. Sonia, por exemplo, diz que não amou nenhum outro homem desde o seu namorado de adolescência – e que continua acompanhando o ex-parceiro pelo Orkut. Outra mulher diz que, em 20 anos de relacionamento, nunca se sentiu verdadeiramente amada. Enquanto isso, um idoso admite que fez sua mulher sofrer por muitos anos e agora tenta compensar no fim da relação. Já um outro homem chora ao cantar “Esmeralda”, de Agostinho dos Santos, e lembrar de sua mãe – que, ao contrário do que imaginamos, está viva. Ele comenta: “Não sei por que foi que eu chorei, é uma lembrança boa. O choro foi esquisito.”

Em certo ponto, Coutinho pergunta a uma das suas entrevistadas se o fato de relembrar aquele episódio e comentá-lo publicamente ajudava a cicatrizar as feridas. Ela então responde: “Foi como botar um fecho de ouro e contar pra todo mundo que procurei outro caminho”. É nesse movimento que As canções emerge com uma delicada sessão de terapia. Não no sentido de cura ou de uma utópica salvação pela arte, mas como um compartilhamento cordial e sincero daquilo que há de mais íntimo. Nessa dinâmica de escuta, o filme constrói uma sensibilidade rara entre documentários: em vez de causos espetaculares, as histórias daquelas pessoas parecem falar diretamente sobre nós, conosco. Histórias tão únicas quanto iguais, tão particulares quanto coletivas – tudo cabe nas vidas nessas canções tristes, bonitas que habitam o Brasil e vivem em seu povo.