A edição especial de 60 anos do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, encerrada no último sábado, foi de fato memorável. Por vários motivos, não só pela qualidade e pela força dos filmes consagrados na premiação principal.
O festival já começou em alta voltagem estética e política, com a exibição, fora de competição, de O agente secreto. O thriller político/dramático/fantástico de Kleber Mendonça Filho, ganhador das Palmas de direção e ator (Wagner Moura) em Cannes, estabeleceu um patamar difícil de ser alcançado pelo que viria depois. Voltaremos a ele quando chegar ao circuito exibidor, em novembro.
Fantasia distópica
O júri do festival consagrou a brilhante fantasia distópica gaúcha Futuro futuro, de Davi Pretto, talvez o longa-metragem mais ousado e desconcertante da competição, ao usar e ao mesmo tempo questionar a inteligência artificial para expressar perplexidade diante de um mundo à beira do apocalipse.
O refinado e rigoroso Corpo da paz, de Torquato Joel, que recria num límpido preto-e-branco e narrativa elíptica a descoberta do mundo por um garoto do sertão paraibano no contexto da ditadura militar e da “cooperação” EUA-Brasil, ficou com um punhado de prêmios ditos técnicos: fotografia, direção de arte, trilha sonora, edição de som.
O prêmio do público, bem como os de ator (Murilo Benício) e ator coadjuvante (Christian Malheiros), foi para Assalto à brasileira, de José Eduardo Belmonte, reconstituição em chave de comédia dramática policial, profundamente brasileira, de um assalto a banco ocorrido no centro de Londrina em 1987.
Outra abordagem inventiva de gêneros tradicionais, da comédia à ficção científica, encontra-se no longa cearense Morte e vida Madalena, de Guto Parente, irresistível declaração de amor e humor ao próprio cinema. Surpreendentemente, levou apenas o prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).
A hora das periferias
Mas talvez o mais interessante e animador nesse festival tenha sido a emergência, ou antes afirmação, de uma cinematografia plural, ainda um tanto torta, imperfeita e desajeitada, vinda das várias periferias – geográficas, sociais, étnicas, de gênero.
O exemplo mais eloquente dessa tendência foi a presença, na competição principal, de dois filmes dirigidos por filhas de trabalhadoras domésticas, o longa Aqui não entra luz, de Karol Maia, e o curta Laudelina e a felicidade guerreira, de Milena Manfredini. O primeiro, ao colocar em cena as histórias de cinco domésticas (incluindo a mãe da diretora) em quatro estados brasileiros, perde um pouco aquele que parecia ser seu foco principal: o espaço do “quarto de empregada” como herdeiro da antiga senzala, e do trabalho doméstico como extensão da escravização da “mucama”, aquela que é “quase da família”.
Já Laudelina, que retrata com rico material de arquivo a luta pioneira de Laudelina de Campos Mello pelos direitos das trabalhadoras domésticas, é um primor de invenção e experimentação audiovisual, provando que empenho estético e ativismo político-social não são excludentes. Vigor e rigor caminhando lado a lado. Uma pequena obra-prima.
Rompendo o feudo
Durante muito tempo, a produção cinematográfica brasileira foi, com raras exceções, um feudo de realizadores brancos de classe média do eixo Rio-São Paulo. Mesmo movimentos de ruptura, como o cinema novo e o cinema experimental dito “marginal”, não contavam com mulheres e negros na direção (só nos elencos).
Aos poucos as fronteiras dessa cidadela foram se rompendo. No cinema da chamada Retomada (anos 1990), um número expressivo de realizadoras conquistou seu espaço, ao mesmo tempo em que surgiam polos importantes de produção em Pernambuco, Minas, Ceará, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Sul. Nos últimos tempos, realizadores filhos das classes trabalhadoras – de Adirley Queirós a André Novaes, de Cristiano Burlan a Gabriel Martins – têm ocupado um espaço crescente.
O festival de Brasília de 2025 consagra um ápice desse processo de ampliação do campo produtivo, com obras dirigidas ou co-dirigidas por indígenas (como o longa Xingu à margem e o curta Replika) e por jovens das periferias de Belo Horizonte (Cantô meu alvará), de Maceió (Ajude os menor) e do DF (Fogo abismo), além das citadas diretoras filhas de domésticas. Uma trabalhadora do sexo venezuelana de origem indígena conta em primeira pessoa sua experiência de vida no mundo bruto do garimpo de Roraima em A pele do ouro (prêmios de roteiro e fotografia).
Do ponto de vista do gênero e da orientação sexual, merecem destaque o curta gaúcho Logos, dirigido e protagonizado pela realizadora trans Britney Federline, e a excepcional performance da atriz trans Noá Bonoba no papel da protagonista mulher cis (e grávida!) de Morte e vida Madalena. Também notável é a abordagem da homossexualidade em meios ostensivamente masculinos, como o bumba-meu-boi (no curta piauiense Boi de salto) e o cangaço (no curta baiano Couraça, ganhador do prêmio do público).
Vista em conjunto, é toda uma cinematografia que se vivifica e se enriquece por todos os lados, de todas as perspectivas. O país, com sua população multiétnica, plena de contradições sociais e heranças perversas, apenas começa a mostrar sua cara, ou suas múltiplas caras.
Escravidão revisitada
Em conversas ao longo da semana em Brasília, mais de uma vez foi lembrado o célebre debate (que prefiro chamar de massacre ou linchamento) suscitado no festival de 2017 por Vazante, de Daniela Thomas, considerado por muita gente uma visão demasiado branca e estetizada do nosso passado escravista. Escrevendo aqui sobre o episódio, na época, eu disse: “Se essa leitura da história é, como todas, contingente, provisória e insuficiente, que venham outras. Material não falta. Como escreveu Thomas Mann na abertura de seu José e seus irmãos, é muito fundo o poço do passado”.
Pois bem, no mesmo festival, agora em 2025, um filme dirigido por uma jovem negra revisita o tema à sua maneira. É Quatro meninas, de Karen Suzane, que imagina a fuga de quatro adolescentes negras escravizadas de um internato de elite, acompanhadas por quatro garotas brancas também fugitivas. Por um momento, a relação de poder se inverte, com as sinhazinhas à mercê da força e dos saberes de suas ex-escravas.
Esse argumento poderoso, a meu ver, não se desenvolve a contento, engessado por uma dramaturgia convencional, diálogos explicativos e uma certa visão programática, de cumprimento de pautas imediatas. Mas é um passo essencial, a abertura de uma vereda promissora. A despeito de sua insuficiência e incompletude, é um dos acontecimentos mais relevantes do festival. Outros filmes e outros festivais virão. O mundo não acaba hoje, ou ao menos assim esperamos.
