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As leis do desejo

31 de janeiro de 2025

de: Marcelo Caetano
para: Fábio Leal
data: 16 de jan. de 2025
assunto: as leis do desejo

No final de 2023, eu trabalhava na montagem de Baby como se fizesse a cartografia de uma floresta. Media a distância entre uma árvore e outra. Catalogava a flora e a fauna. Desenhava o curso dos rios. Estava no meu modo obsessivo, preocupado com progressão, ritmo, duração, estrutura narrativa. Fabian Remy, o montador, vendo que o meu olhar se cansava, me propôs uma outra forma de caminhar pela floresta: ele sugeriu que eu olhasse para a copa das árvores, para o movimento do vento, para o voo errático dos pássaros. Que eu abandonasse a cartografia e vivesse o encantamento.

Foi assim que surgiu a cena final. Olhando para o alto. Decidimos ficar com Ronaldo sozinho no ônibus, lembrando do momento ápice da paixão: Baby dançando vogue e Ronaldo boxeando na laje da pensão. Ao fundo, o céu cinza-azulado de São Paulo, o Moinho abandonado, a linha do trem que corta o centro da cidade como uma cicatriz. É o que podia ser dito depois de um reencontro em que faltaram palavras.

Me lembra “Silêncio”, música de Flávia Wenceslau, que conheci na voz de Bethânia: “Silêncio, eu preciso tanto ouvir o céu/ Já não é mais urgente assim falar/ Meu coração precisa repousar."

Eu tenho a impressão de que as relações amorosas são um pouco assim. Um tanto cartografia, um tanto encantamento. A gente quer entender o caminho que trouxe o outro até aqui, pra depois prever seus passos. Nós escutamos e fazemos anotações mentais, planos, projetos, cálculos. Pra depois deixar tudo cair por terra e se surpreender com um gesto, um sentimento inesperado. O outro é um abismo.

E a paixão é a cartografia de uma floresta em chamas.

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Você começa sua carta com “Baby”, de Caetano, e eu te digo que essa música existiu em todas as versões do roteiro, menos a da filmagem. Nos primeiros tratamentos, Ronaldo apresentava a música para Wellington, nos últimos, era Alexandre, o candidato a sugar daddy. O protagonista chegava a comprar uma camisa onde se lia “Baby” em vermelho, a mesma que hoje virou merchan do filme. A música está ali, mas não está. Assim como o pai de Wellington está ali no filme, mas não está.

Quando escrevi o diálogo do reencontro de Baby e Ronaldo no ônibus, mandei a cena para o corroteirista Gabriel Domingues. Ao invés de dizer se gostou ou não, ele me enviou a canção “Foi mal”, de Urias, e me assustei. Parecia resumir o filme. Relutei em usá-la, porque era muito literal, explicava demais. Era melhor ficar com “Baby”, que celebrava São Paulo e seus amores pop.

Até que um dia ouvi o podcast da Mubi com a diretora de Aftersun, Charlotte Wells. Ela dizia que, quando teve a ideia de usar “Under Pressure”, de Queen e Bowie, no final do filme, todos tentaram dissuadi-la: explicava demais os sentimentos do personagem de Paul Mescal, matava o mistério. Mas aí ela tomou uma decisão, que, para mim, separam os filmes que voam para encontrar o público daqueles que permanecem como belas caixas impossíveis de abrir. Em algum momento do filme, você precisa ser claro. Precisa dar imagem, sentido e às vezes música aos sentimentos.

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Em “Foi mal”, os autores dizem: “Tentando o meu melhor, eu mostrei o pior de mim”. Isso me lembra imediatamente A lei do desejo, de Almodóvar. Em O último sonho, o diretor espanhol explica o título de seu melhor filme: quando você estiver no ápice da intensidade amorosa por uma pessoa, ela não vai estar com a mesma intensidade. E quando for ela que estiver no ápice, você estará em outra frequência. A lei do desejo, para Almodóvar, é o desencontro das intensidades.

Em Baby, eu tentei propor a minha lei do desejo, e talvez ela tenha revelado demais as minhas cicatrizes. Eu penso que existem relações tão intensas que são impossíveis de mantê-las por um longo tempo em nossa vida, elas exigem muito do nosso coração. E talvez seja por isso que as grandes paixões não assentam, não duram.

“Tudo que eu fiz foi pra te proteger de mim/ Chegamos nesse fim, que fim, foi mal.”

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Adorei receber sua carta. Compartilhamos do mesmo amigo íntimo, Thales Junqueira, diretor de arte de Baby. Falo íntimo, porque é com ele que a gente fala todo dia, é nele que despejamos nosso humor absurdo, ele diz. E é engraçado que eu e você nunca caminhamos juntos pela floresta, sendo que nossos filmes estão lá: os amores desencontrados de Baby e Na sua companhia, os personagens cheios de desejo de O porteiro do dia, Reforma e Seguindo todos os protocolos. Curioso que as histórias de todos eles não duram. Pelo menos, assim me parece ao fim de cada filme.

Maria Bethânia quando canta a música de Flávia Wenceslau, “Silêncio”, muda uma palavra. Ela já disse mil vezes que tem palavras que ela não canta. E nesse caso a palavra que ela muda é justamente “MUDAR”.

Flávia escreveu: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/ Quero saber se a minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão mudar.” Pra Bethânia cantar: “Quando acredita que essas coisas vão DURAR”.

E aí eu pergunto para os nossos personagens, estes que ficam voando de árvore em árvore. O que a gente precisa mudar para que as coisas possam durar? Ou, em sentido oposto, quando será que a gente deixará o outro ser o que ele é, amá-lo em sua complexidade, sem que ele tenha que mudar para que a gente permaneça?

 

O filme Baby está em cartaz no cinema do IMS Paulista e IMS Poços em fevereiro.