Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

Atrás da máscara

24 de outubro de 2017

Quando perguntado sobre seu uso de cinema de gênero em “Possessão”, Żuławski respondeu com a frase larvatus prodeo – o latim para “aproximar-se vestindo uma máscara”. – Daniel Bird, “Devils’ Games”, em “Story of Sin: Surrealism in Polish Cinema”

Andrzej não gostava de ser classificado como “surrealista” ou “fantástico”. Talvez o único adjetivo que ele detestasse mais era “histérico”. Isso é compreensível. Em entrevistas, na televisão ou em revistas, sempre parecia extremamente equilibrado. Suas respostas eram medidas e bem pensadas; revelavam sua ampla leitura da filosofia, da arte e da literatura – essa última sua primeira paixão, e talvez a mais duradoura. Para um cineasta conhecido por façanhas visuais elaboradas, ele era incrivelmente ligado ao texto. Não há nenhuma contradição nesse fato. Foi precisamente a sua destreza em ambos, imagem e texto, que o fez um cineasta intrigante e complexo.

Em seu primeiro longa, A terça parte da noite (Trzecia część nocy, 1971), um homem jovem, Michał, perde sua esposa e seu filho pequeno nas mãos dos nazistas. Conhece então uma mulher casada, Marta, que está em trabalho de parto. Sob a influência dela, retorna ao seu antigo emprego num instituto alemão, onde alimenta com seu próprio corpo as sanguessugas que serão usadas no desenvolvimento de uma vacina contra a febre tifoide. Michał finge que ajuda os alemães, mas, na realidade, faz parte da resistência. Tudo está bem, exceto pelo fato de Marta, por quem Michał se apaixona, ser uma cópia exata de sua falecida esposa. Na verdade, elas são, ou no mínimo podem ser, a mesma mulher. Será que Michał está vendo fantasmas? Essa é a sua segunda chance de ser feliz, ou ele enlouqueceu? Ou ambos? À medida que o mundo colapsa ao redor de Michał, ele perde sua capacidade de distinguir entre o sonho e a realidade.

Cena de A terça parte da noite, filme baseado nas experiências do pai do diretor durante a Segunda Guerra

 

As mudanças bruscas – de tempo, lugares e pontos de referência – fizeram com que os críticos chamassem o cinema de Zuławski de “absurdo”. Ele concordou, mas enfatizou: “Tudo o que você vê é real”. Na verdade, a história de Michał é baseada nas experiências do próprio pai do diretor durante a Segunda Guerra Mundial. Zuławski visitou o instituto onde o seu pai trabalhava, e viu como a cura da febre tifoide funcionava. As cobaias desenvolviam febre alta e alucinavam. Daí surgiu a afirmação de Zuławski de que tudo no seu filme era real – as imagens espantosas, a perda de orientação, a claustrofobia enlouquecedora, tudo aquilo poderia ter acontecido com o seu próprio pai.

No entanto, podemos considerar que a escolha consciente de Zuławski de levar essa ideia ao extremo, tanto na narração quanto na linguagem visual, seja uma “máscara”. Quando Andrzej Wajda, renomado cineasta polonês que empregou Zuławski como assistente, viu o roteiro do filme, recomendou mudar tudo. A história precisava fazer sentido, ser linear. Zuławski, é claro, não seguiu o conselho do mestre. Ele queria provocar desconforto e vertigem nos espectadores. Assim concebeu o seu “hiperrealismo”. Anos mais tarde, em uma longa entrevista aos críticos de cinema Piotr Kletowski e Piotr Marecki (publicada originalmente como livro), Zuławski explicou sua escolha da máscara, ou seja, o gênero de horror, dizendo: “Não tem como explicar isso [a guerra, o holocausto]. Não tem como explicar o mal.” No final, na visão de Zuławski, tudo se resume à questão da representação. Como mostrar o que não pode ser mostrado? Expressar o inexprimível? Zuławski não estava sozinho nessa preocupação. Os escritores Primo Levi e Samuel Beckett, ou o diretor Claude Lanzmann, entre outros, imediatamente vêm à mente.

Cena do filme O globo de prata, épico que Zuławski nunca conseguiu terminar

 

Em inúmeras cenas de Possessão (Possession, 1981), Anna (Isabelle Adjani), uma esposa perturbada, gagueja, luta visivelmente por palavras. O tormento de Anna é inexprimível. Seu desejo é tão abrupto que ela é literalmente “possuída”. O objeto de seu desejo é um monstro bizarro, viscoso, escondido num apartamento quase vazio em Kreuzberg, no lado ocidental de Berlim. Segundo Zuławski, sua equipe de filmagem se instalou perto do Muro de Berlim, e sua mente estava sempre do outro lado. Enquanto filmava, se lembrava das razões que os levaram a deixar seu país após os filmes ousados, como O diabo (Diabel, 1972), que trata da tragédia de um grupo de conspiradores do século XVIII, mas se refere claramente aos eventos pós-1968 – quando a Polônia e outros países do bloco oriental invadiram Praga, terminando o período de descongelamento político conhecido como Primavera de Praga – e a seu épico, O globo de prata (Na srebrnym globie), que ele nunca conseguiu terminar, e cujos figurinos foram destruídos dias antes de completar a filmagem (em 1986, Zuławski seria convidado para retomar O globo de prata, mas consideraria a finalização impossível, acrescentando apenas um contexto contemporâneo para explicar o que se passou durante a rodagem; as cenas adicionais de Varsóvia dos anos 1980 ampliam o significado histórico e social do filme).

Neste contexto pessoal e histórico complexo, a máscara representa muitos rostos. Há monstruosidade na paixão de Anna, mas também na possessividade do seu marido Mark (Sam Neill). A violência do casal é grotesca, mas ela ecoa o mundo que o rodeia – o absurdo das políticas internacionais da Guerra Fria como a “aniquilação total”. E, embora essa seja uma leitura muito pessoal, sempre que vejo os corpos sangrentos de Anna e Mark e a luz penetrante e ofuscante que preenche o último quadro do filme, não consigo deixar de pensar nas fobias e no medo real da guerra nuclear daquela época, ou na tragédia que aconteceria cinco anos depois, em Chernobyl.

Quem já viu uma criança vestida de monstro para o Halloween sabe que a máscara pode tanto aterrorizar como divertir. Algo parecido acontece no cinema de Zuławski. Possessão é, ao mesmo tempo, um dos filmes mais belos e mais angustiantes que tratam da liberdade. Não perdeu sua potência, nem mesmo nesta época pós-feminista. É interessante comparar Possessão com O importante é amar (L’Important c’est dáimer, 1975), rodado seis anos antes, em que Jacques Dutronc interpreta um marido que, ao se sentir incapaz de fazer sexo com sua mulher, decide liberá-la para buscar outros parceiros. A cena em que Nadine (uma atriz pornô decadente) e Jacques decidem se separar num café é, possivelmente, uma das mais dolorosas na história do cinema. Jacques sabe instintivamente que não consegue sobreviver sem ela. Nadine se sente imensamente grata a Jacques. Acima de tudo, ainda o ama. No entanto, no universo de Zuławski, a paixão física e a arte estão tão intrinsecamente entrelaçadas que perder uma delas significa um golpe mortal.

Em Possessão, Mark – um empresário, ou talvez um espião – sabe que Anna está infeliz, mas não quer libertá-la. Um dos (vários) pontos culminantes no filme ocorre novamente num espaço público: Mark libera sua fúria contra Anna no Café Einstein, em Berlim – hoje um lugar turístico, mas que já foi mais boêmio. O título do filme em si soa irônico. Quem é verdadeiramente possuído? A infeliz Anna, que encontra prazer na “monstruosidade” do sexo, ou seu marido obcecado? Carnalidade gera infelicidade para ambos. No entanto, comparado com Anna e suas emoções fortes, Mark parece um pouco como um “morto-vivo”.

Por fim, nem Anna nem Mark são livres. A liberdade, em uma escala muito mais ampla, metafísica, é também o tema da adaptação que Zuławski fez da trilogia de ficção-científica O globo de prata, escrita em 1903 por seu tio-avô Jerzy Zuławski, em que um grupo de astronautas sofre um acidente num planeta distante e cria uma nova civilização. Como em Possessão e O importante é amar, Zuławski conta a história de um ménage-a-trois permeado pelo ciúme e pela possessão – entre Marta (Iwona Bielska), que se torna a mãe arquetípica, e os homens da missão intergaláctica. A nova raça rapidamente cria seus mitos, crenças misteriosas que, ao longo do tempo, começam a escravizá-la. Nesse sentido, podemos ver o fascínio de Zuławski pelo conceito de religião, particularmente pelos rituais (Zuławski foi fascinado não apenas pelo teatro altamente ritualístico de seu compatriota Jerzy Grotowski, mas também pelos rituais de vudu).

Cena de O importante é amar: na obra do diretor franco-polonês, a paixão física e a arte estão intrinsecamente entrelaçadas

 

Por que precisamos de mitos, de máscaras, Zuławski parece perguntar ao longo de sua carreira? Em O diabo, o personagem principal (interpretado por Wojciech Pszoniak, que também foi Robespierre em Danton, de Andrzej Wajda), usa a máscara de um infiltrador. Um jovem revolucionário, Jakub (Leszek Teleszyński), sai da prisão. Ao descobrir que sua noiva o traiu e que a sua família foi morta, ele se submete aos sussurros do infiltrador, “o diabo”, e se torna um assassino. Mas e se o diabo – e deus – não existirem? E se a máscara cair e revelar Jakub como idealista, intolerante e predisposto aos crimes terríveis? Zuławski, que admirava Fiódor Dostoiévski, cria sua própria visão do fervor niilista.

Há traços de Shakespeare em O diabo, quando Jakub se encontra na companhia de artistas de teatro, como Hamlet na companhia de Rosenkrantz e Guilderstein (é um ator que fala para Jakub as palavras-chave: “Agora tudo é permitido”; mais tarde, no filme, uma trupe de atores apresenta uma cena de Hamlet). A jovem noiva de Jakub é uma figura parecida com Ofélia. Em seu vestido diáfano, e com olhos que expressam inocência e terror, a noiva cai no desespero quando vê Jakub, que acreditava morto.

Zuławski também mostrou sua paixão pela literatura no seu último filme, Cosmos (2015), uma adaptação do romance heterônimo do escritor modernista Witold Gombrowicz, no qual dois jovens passam alguns dias no interior em circunstâncias estranhas. Sinais, coincidências misteriosas e pensamentos obsessivos permeiam a narrativa. O conceito da adaptação é ousado: Zuławski levanta as passagens do original com sua linguagem arcaica, mas também acrescenta diálogos contemporâneos. Dessa forma, sobrepõe espaços temporais diversos. Por um lado, uma homenagem, por outro, um pastiche. Mistura registros altos e baixos, cenas macabras e prosaicas. O personagem central do filme é um jovem escritor ambicioso – como Gombrowicz ou o próprio Zuławski poderiam ter sido na juventude –, cuja imaginação robusta o confunde e o desorienta.

A sensualidade, o humor, o grotesco – Zuławski transpôs esses elementos principais da sua arte para o cenário da província francesa. Uma homenagem surpreendentemente delicada e, ao mesmo tempo, brincalhona, ao enfant terrible das letras polonesas. Pois o próprio Gombrowicz adorava zombar do esnobismo das pessoas cultas e exaltava a beleza e a força da juventude rural. Nesse sentido, era um pouco como Pier Paolo Pasolini, que preferia a aspereza da fala e dos costumes populares às formas refinadas da elite urbana. No mundo de Zuławski, não há mais latifundiários, como havia no mundo de Gombrowicz, mas a capacidade humana para acreditar, ou até criar seus próprios absurdos e desajustes sociais, continua a mesma.

Ela Bittencourt é crítica e curadora da Retrospectiva Andrzej Zuławski, em cartaz no IMS Rio. Dia 28, após a sessão de A terça parte da noite (às 16h), haverá debate com a curadora