O estrondoso e merecido sucesso de Ainda estou aqui, já mencionado no post Brasil despedaçado, acaba por eclipsar outros filmes brasileiros recentes que não devem passar batidos pelo circuito exibidor. Um deles é o corajoso e envolvente Malu, de Pedro Freire, que já foi abordado aqui, no post Cores e dores do mundo. Outro que não se deve perder é Avenida Beira-Mar, de Maju de Paiva e Bernardo Florim, que entra em cartaz nesta quinta-feira. Vamos a ele.
A trama se passa na praia de Piratininga, em Niterói, onde a pré- adolescente Rebeca (Milena Pinheiro) acaba de chegar de mudança com sua mãe, Marta (Andrea Beltrão), que convalesce de uma doença grave. Nesse pacato bairro praiano Rebeca conhece outra menina da sua idade, Mika (Milena Gerassi), de quem se torna amiga, depois de uns desentendimentos iniciais.
O filme é, basicamente, a história dessa amizade – e de tudo que a cerca e ameaça: preconceito, hostilidade, incompreensão. Porque ocorre que Mika nasceu com um corpo de menino e o nome de João Pedro. Sua almejada identidade feminina afronta o desejo dos pais e a moralidade tacanha da vizinhança, em especial dos garotos adolescentes.
O fato de Rebeca ser uma menina negra filha de uma mulher branca acrescenta um dado de perturbação à mentalidade estagnada do bairro – e do país todo, diga-se.
Romance de formação
Nada disso é tratado a partir de um discurso exterior, militante ou panfletário. Palavras como machismo, transfobia e racismo não são pronunciadas sequer uma vez. Tudo se mostra nas ações.
É, fundamentalmente, um romance de formação, que tem a sagacidade de ser narrado da perspectiva de Rebeca, ainda que a grande personagem trágica seja Mika/João Pedro. Esse viés realça a sutileza das elipses e dos não-ditos. O próprio modo como a identidade de Mika se revela a Rebeca e ao espectador é fragmentado e paulatino: um entrevero com garotos na praia, uma pichação no muro da casa da menina, a mudança de penteado e de indumentária para se apresentar aos pais e à escola etc.
A precisão e a delicadeza na observação da subjetividade de todos os personagens, não só das duas protagonistas, são acompanhadas por uma atenção muito grande aos objetos (patins, canivete, brinco, sutiã) e seus significados, bem como aos ambientes: a praia como local de liberdade e ameaças, as casas vazias, uma boate abandonada, um pequeno depósito onde alguém se esconde.
Cantos esquecidos do mundo
A certa altura, é como se as duas amigas passassem a descobrir e explorar os cantos esquecidos do mundo, convertidos em locais de aprendizado, sonho e prazer. A cena em que Mika, na boate em ruínas, se veste com as roupas da irmã e dubla Gal Costa cantando “Dê um rolê” vale por uma epifania, um manifesto libertário. Igualmente inspirado é o plano final, que deixa em aberto o destino das amigas, sob o olhar cúmplice da mãe de uma delas (não digo qual porque já dei muito spoiler). Em tempo: este foi o último trabalho do veterano Emiliano Queiroz (1936-2024), numa participação breve, mas luminosa. O elenco todo, aliás, está muito bem, em especial as duas jovens protagonistas e a sempre ótima Andrea Beltrão.