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Babenco em cartaz

19 de setembro de 2022

Os três filmes iniciais da obra de ficção de Hector BabencoO rei da noite (1975), Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977) e Pixote, a lei do mais fraco (1980), foram resgatados dos arquivos e restaurados nos últimos quatro anos. A obra de Babenco parecia estar numa estante segura, porém alta, do Cinema autoral brasileiro. Seus filmes aguardavam atualização técnica. Redescobri-los via trabalho de Myra Babenco, filha do roteirista, produtor e cineasta, permite reconstruir um panorama histórico dessas obras no Cinema Brasileiro. É o melhor fruto possível da restauração de filmes de qualquer acervo.

Babenco, argentino radicado no Brasil, estabeleceu comunicação notável com o grande público, o prestígio de premiações e o respeito da crítica. Os filmes sedimentaram a segunda parte de uma carreira, que continuou a impressionar, também no exterior.

Essa temporada de obras de Hector Babenco no Cinema do Instituto Moreira Salles (este mês na sala da avenida Paulista, em novembro no IMS Rio) – via projeto Memória de Hector Babenco da HB Filmes – apresenta em primeira mão no Brasil a restauração em 4K de Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, um grande filme brasileiro. Depois da estreia no IMS, a cópia será vista pela primeira vez no exterior em outubro, no prestigioso Festival Lumière, em Lyon, França.

Os retratos do Brasil filmados por Babenco nas últimas quatro décadas mostram que o país continua com as mesmas áreas inflamadas, e agora com sinais de retrocesso. Em O rei da noite, a masculinidade podre na alta sociedade sudestina atravessa o século 20 fazendo estragos. É uma crônica afiada com o corte de São Paulo. Revisto em 2022, o filme é tão duro na sua lógica humana e social quanto bem encenado por Babenco, Lauro Escorel, Paulo José, Marília Pera, de fato, por todo o elenco.

A violência institucionalizada mediada pela relação que o país tem com o seu próprio racismo empurram Lúcio Flávio sempre para a frente como um bólido. O filme levou milhões de brasileiros às salas em 1978-1979. Teve enorme impacto na cultura, virou assunto, foi discutido, foi censurado.

Na época, Babenco relatou livremente em entrevistas que "a única intervenção final da censura foi o corte de alguns segundos de nudez frontal de Reginaldo Faria […]. E por determinação daquele departamento, o filme recebeu um letreiro suplementar, informando – ilusoriamente – que os elementos ligados ao caso Lúcio Flávio foram expulsos da polícia e punidos criminalmente." Eu achei que essa ordem dada pela censura não deveria estar no filme restaurado, mas entendo a decisão de deixá-la. Foi assim que o Brasil viu o filme na época.

Lúcio Flávio, o passageiro da agonia transcorre na tela como se duas ou três páginas policiais de jornal fossem dramatizadas em sequências rápidas (o texto é adaptado do livro de mesmo título de José Louzeiro). É um relato assombrado por fantasmas da vida brasileira, a morte e a tortura como armas de Estado. Acima de tudo, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia é um thriller nosso, sujo e malvado.

O abandono dos vulneráveis que o Brasil brutaliza é o coração de Pixote, que foi restaurado em 2018 pela Fundação George Lucas e Film Foundation, via Martin Scorsese. É o filme assinatura de Babenco.

A história de um garoto e da sua aparente transformação em algo mais bruto nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro. A grande beleza do filme é ver que a metamorfose não chega a acontecer, e Pixote (Fernando Ramos da Silva) segue ainda um tanto doce andando nos trilhos, uma criança áspera, mas ainda uma criança… A trajetória de vida e de morte de Fernando também falam muito do país e faz até hoje uma sombra grande no filme, completando-o.

 Cena de Pixote, a lei do mais fraco, de Hector Babenco

 

Nas últimas décadas, os "títulos de catálogo" do Cinema brasileiro ficaram de fora da cultura do olhar, do (re)descobrir dentro da nossa própria indústria do audiovisual. Com a troca de tecnologia nos últimos 10 ou 12 anos, as cópias envelhecidas em 35 mm pararam de circular totalmente, e nosso acervo – com algumas exceções raras como Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos e alguns Glauber – ficou fora da nova tecnologia de restauração e difusão digital.

Revendo O rei da noite, Lúcio Flávio e Pixote, totalmente restaurados, percebi que as pessoas haviam perdido o contato com eles. Lúcio Flávio e Pixote, juntos, levaram cerca de dez milhões de espectadores aos cinemas.

Talvez seja a competição agressiva do produto estrangeiro (Hollywood, europeus), que não só investe no lançamento dos seus filmes em sala, mas também na manutenção dos títulos. São filmes tratados como produtos, mas cultivados como lembranças. Guardar um filme como quem guarda um livro, ou um arquivo digital, que seja… O Brasil falha ao não cultivar nossos filmes como lembranças.

No último mês de maio, observou-se uma celebração no cenário de cinema brasileiro em torno da projeção no Festival de Cannes – na seleção Cannes Classics – de Deus e o Diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha. Talvez exista hoje um desejo crescente de valorização do álbum da família disfuncional que o Cinema Brasileiro é, uma percepção mais afiada em torno da preservação dos nossos acervos.

Essa observação pode ser um tanto otimista demais. De toda maneira, é do fundo do poço de onde estamos vindo, um período marcado por dois incêndios – um no Museu Nacional e outro na Cinemateca Brasileira (unidade da Vila Leopoldina) –, incidentes que simbolizam o apagão estético e moral observado no país desde 2016.

Avanços exponenciais em tecnologia de imagem e som são notáveis e cada vez mais acessíveis para a revisão de títulos de acervo. Há também a multiplicação de canais de distribuição via projeções especiais em salas de cinema bem equipadas, festivais, mostras e a exploração comercial em múltiplas mídias e plataformas de streaming, que nos permitem aguardar um novo cenário, melhor e mais otimista.

Para tal, no entanto, é preciso que a memória do Cinema Brasileiro faça parte de um projeto sério de governo e Cultura, como em tantos países. E que os grandes autores e autoras do nosso Cinema sejam revistos e valorizados, mas também que uma revisão ampla, diversa e investigativa da produção nacional seja restaurada e disponibilizada de maneira atraente e inclusiva. Que nossos filmes sejam (re)descobertos e apresentados nas suas melhores versões, como as lembranças que são.

Além da trinca inicial de obras geradas por Babenco, o Cinema do IMS apresenta também revisões de Brincando nos campos do Senhor (At Play in the Fields of the Lord, 1990, projetado em cópia 35 mm da época do lançamento), com produção de Saul Zaentz (Um estranho no ninho, Amadeus), já no período internacional de Babenco. Seu último filme – Meu amigo hindu (2015, projeção em DCP) – e o filme-ensaio Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou (2019, DCP), da realizadora e atriz Bárbara Paz, também serão apresentados. O cineasta faleceu em 2016, aos 70 anos, e esta temporada celebra em imagem e som as suas conquistas.

* Kleber Mendonça Filho é cineasta e coordenador de Cinema do IMS