Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

Crepúsculo do macho

22 de setembro de 2022

O documentário Quebrando mitos é um fenômeno. Lançado diretamente em canal próprio na internet e em seguida no YouTube, em menos de uma semana já teve mais de meio milhão de espectadores, o que certamente fará dele um dos filmes brasileiros mais vistos em 2022.

Não é difícil entender o motivo. Realizado por Fernando Grostein Andrade, o mesmo do documentário Quebrando o tabu (2011), sobre a legalização das drogas, Quebrando mitos é um mergulho franco e corajoso na cultura da hipermasculinidade que produziu Jair Bolsonaro e seus seguidores mais furiosos.

O filme é narrado em primeira pessoa pelo próprio Grostein, que se autoexilou na Califórnia quando percebeu que a ascensão do bolsonarismo oferecia risco real de vida a pessoas como ele, que vinha sofrendo ameaças pesadas desde que divulgara um vídeo assumindo sua homossexualidade.

Mesclando material de arquivo (filmes domésticos, reportagens de telejornal, posts de internet) com sequências de animação e entrevistas com os personagens mais diversos (políticos, militares, líderes indígenas, quilombolas), Grostein compõe um impressionante painel do circo de horrores em que se transformou o país nos últimos anos, nisso não diferindo muito de outros documentários recentes.


Culto da virilidade

O que singulariza Quebrando mitos e o torna particularmente contundente é a articulação de todas as questões mais agudas – do desmatamento ao culto às armas, do extermínio indígena ao negacionismo científico, do racismo à misoginia, do fanatismo religioso à violência policial – com o tema central da afirmação de masculinidade. É esse eixo central que impede o filme de cair na dispersão, na egotrip e na mera enumeração de mazelas.

Dois fatores propiciam essa articulação. O primeiro é o “lugar de fala” explicitado pelo diretor. Filho de um editor da revista Playboy, Fernando Grostein viu-se rodeado desde a infância por homens de sucesso e garotas sensuais. Abusado sexualmente aos 14 anos, foi forçado aos 17 a perder a virgindade com uma “coelhinha” da Playboy (nada a ver com o pai, que havia morrido sete anos antes).

Na juventude, Fernando se emaranhou na tradição machista que ensina todo rapaz a transar com o maior número possível de garotas, mas a respeitar apenas as que só transam com o namorado ou nem transam. A história de vida do diretor é a história da construção e desconstrução de um típico macho brasileiro.

O outro alicerce da estrutura do filme é a formação e o desenvolvimento de Jair Bolsonaro, desde a infância e adolescência em Eldorado Paulista, no Vale do Ribeira. Como mostra a jornalista Carol Pires, uma das roteiristas do documentário, estão ali, naquela pequena cidade cercada de quilombos e áreas de preservação, as sementes da personalidade daquele que viria a ser cadete, tenente, capitão reformado, vereador, deputado e presidente da República.

O ressentimento por não fazer parte da elite local, a sensação de que a cidade não crescia por culpa da proteção aos quilombos e às matas, o fascínio pelas armas e fardas (despertado quando o exército vasculhou a região à caça de Carlos Lamarca) – está toda ali, em embrião, a atitude de Bolsonaro diante do mundo.

Quebrando mitos é, em suma, o entrechoque dessas duas vidas paralelas e antagônicas, no cenário de um país fraturado. Ao se colocar de corpo e alma em seu filme, Fernando Grostein dá a cara a bater e transcende a mera denúncia jornalística ou o mero panfleto político. Responde a uma declaração de guerra com uma bomba de efeito (literalmente) moral.

 

Clarice e samba paulista

Entra finalmente nos cinemas esta semana o belo O livro dos prazeres, de Marcela Lordy, transposição sensível e criativa do romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector. Escrevi sobre ele quando foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2020.

Está em cartaz também um filme enganosamente singelo, de baixíssimo orçamento, chamado Curtas jornadas noite adentro, de Thiago B. Mendonça. Contrariando a célebre boutade de Vinicius de Moraes (“São Paulo é o túmulo do samba”), mostra-se ali a resistência e a vitalidade do samba paulistano, por meio das histórias entrelaçadas de trabalhadores da periferia que se encontram à noite para tocar, cantar e dançar em bares e terreiros da cidade. Crônica urbana e celebração da cultura popular numa ode ao “possível novo quilombo de Zumbi”.