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Estética do exagero

02 de fevereiro de 2023

Ficou famoso o comentário do grande físico e crítico de arte Mario Schenberg na banca de doutorado de um estudante: “Seu trabalho tem ideias interessantes e originais. Pena que as ideias interessantes não sejam originais e as ideias originais não sejam interessantes”. Pode-se dizer mais ou menos o mesmo sobre Babilônia, de Damien Chazelle, em cartaz nos cinemas.

O argumento do filme é promissor: o destino de um punhado de personagens em Hollywood na época da passagem do cinema mudo para o sonoro. O cinéfilo atento pensará de imediato: “Ah, como em Cantando na chuva”.

Aqui entram os aspectos interessantes, mas não originais. As melhores ideias de Babilônia em torno desse momento crítico da história do cinema foram tiradas descaradamente do clássico musical de Stanley Donen e Gene Kelly: a estrela cuja voz e pronúncia não resistem ao advento do som; o galã ridicularizado em seu primeiro filme falado, assistindo escondido à pré-estreia do filme; as inúmeras trapalhadas e repetições na primeira cena sonora filmada etc.

Frenesi e escatologia

São três os protagonistas, entre uma miríade de personagens reais e fictícios: a starlet Nelly LeRoy (Margot Robbie), o astro consagrado Jack Conrad (Brad Pitt) e o faz-tudo convertido em executivo de estúdio Manny Torres (Diego Calva). Em torno deles se desenvolve em ritmo frenético, para não dizer histérico, uma série de episódios que supostamente mostram os bastidores e a prática do cinema entre meados da década de 1920 e o início da seguinte.

A ênfase, como o próprio título sugere, recai sobre o desregramento moral, a orgia contínua de dinheiro, sexo e drogas suscitada pela “fábrica de sonhos” – com direito à ressaca e ao pesadelo correspondentes. Há uma base histórica para isso: os anos 1920 foram marcados por escândalos como o da moça morta numa festinha de embalo do astro da comédia Roscoe “Fatty” Arbuckle, cuja carreira despencou a partir da ocorrência.

Na festança do início do filme, na mansão do megaprodutor Don Wallach (Jeff Garlin), ocorre um fato parecido. Só que a festa é muito maior, com centenas de convidados, drogas à vontade e sexo praticado à frente de todos. A estética de Damien Chazelle é a do excesso, do frenesi, da escassa delicadeza.

E também da escatologia. Já na primeira cena um elefante, ao ser levado como atração para a tal festa, defeca nos homens que o transportam e na própria câmera, preenchendo a tela com seus excrementos. É um anúncio do que virá nas três horas seguintes: vômitos diversos, um homem entalado com a cabeça numa privada, outro que devora ratos vivos, uma mulher que esfrega na bunda a estola de mink de uma madame etc. Chazelle, definitivamente, não é chegado a uma sutileza.

Plágio legitimado?

A referência a Cantando na chuva se torna explícita perto do final, num salto para 1952, quando Manny Torres assiste ao filme no cinema. É como se a homenagem legitimasse o plágio praticado antes.

Com tudo isso, talvez o cinéfilo curioso se divirta com Babilônia, seja pelo humor cartunesco, seja pela presença de figuras históricas reais, como o produtor Irving Thalberg e o magnata da imprensa William Randolph Hearst, seja pelas citações/homenagens/plágios de outros filmes. Por exemplo, em sua primeira aparição, o personagem Jack Conrad despeja falas num italiano macarrônico, como o mesmo Brad Pitt fez em Bastardos inglórios, de Tarantino. E a emotiva colagem final, extra-narrativa, de imagens marcantes da história do cinema remete à nostálgica cena análoga de Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore.

Se, em alguns momentos, Babilônia, com seus exageros caricaturais, parece aspirar à sátira descabelada (à maneira de um Monty Python), em outras passagens ele mostra que se leva a sério e pretende emocionar.

De Crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) a O jogador (Robert Altman, 1992), de Assim estava escrito (Vincente Minnelli, 1952) a O último magnata (Elia Kazan, 1976), de Barton Fink (Joel e Ethan Cohen, 1991) a Era uma vez em Hollywood (2019), passando evidentemente por Cantando na chuva, o cinema norte-americano refletiu sobre sua própria história de maneiras interessantes e originais. Babilônia entra nessa lista, mas bem embaixo.

Yanomami no cinema

A revelação, nas últimas semanas, da gravidade da tragédia Yanomami tornou ainda mais atuais e pungentes dois extraordinários documentários recentes: A última floresta, de Luiz Bolognesi, e Gyuri, de Mariana Lacerda. Sobre o primeiro eu escrevi quando foi exibido no Festival É Tudo Verdade, há dois anos. É um mergulho no modo de vida e no imaginário desse povo belo e ameaçado. Está na Netflix.

Gyuri, por sua vez, documenta a relação profunda entre a fotógrafa húngara-suíça-brasileira Claudia Andujar e os Yanomami, que ela fotografou lindamente, e de modo pioneiro, desde os anos 1970. Foi em grande parte graças a seu trabalho e sua militância que os Yanomami ganharam notoriedade e proteção, processo que culminou com a demarcação de suas terras, em 1992.

O fio condutor do documentário é a volta da fotógrafa ao território Yanomami e seu reencontro, depois de décadas, com o líder, xamã e escritor Davi Kopenawa. O filme está disponível para compra ou aluguel no YouTube.