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Fogo-fátuo, de João Pedro Rodrigues

08 de fevereiro de 2023

Nós apertamos os dois
Então aí é que foi
Aperta aperta com ela
E assim amor pois então
Começou nossa paixão
Nesse baile de verão
José Malhoa

1.

É uma imagem muito específica: o carro de bombeiros corta, com seu vermelho encarnado, uma área verde no interior de Portugal. Há ou não há urgência, pode ser um incêndio, pode ser um treinamento. O que realmente está em jogo acontece longe dali, nos corações das pessoas envolvidas nessa viagem, e nas pessoas que moram nesse lugar, se embriagam de sua história, se beneficiam de seus privilégios, sofrem e choram. Essa imagem, que acontece no Fogo-fátuo, de João Pedro Rodrigues, acontece também no inesquecível Aquele querido mês de agosto, de Miguel Gomes. Não posso realmente os aproximar anedoticamente num plano político ou social, já que Rodrigues olha com maior interesse para a imagem que Portugal oferece ao mundo, enquanto Gomes conta histórias de vila, contos de comunidade. Mas é impossível não os aproximar ao perceber que as duas são histórias de imagem e performance, representação e sonho, cinema e cinema.

 

2.

É uma imagem muito específica: o corpo do rei – que em breve veremos em seu passado de príncipe, com contornos de twink, de cupido cacheado, de hipster enjoado monocórdico, mas firme, que irrita e influencia sua família real – está agora velho, morto, preso a uma triste câmara mortuária em seu próprio e decadente palácio, servindo, talvez como última lembrança de suas brincadeiras juvenis, como suporte para as brincadeiras de uma criança que fica ao seu redor. Apesar de nunca ter sido particularmente afeito a meditações muito diretas sobre a complexa história e herança política de Portugal, o outro episódio em que João Pedro Rodrigues pensou esses temas me informa muito sobre a maneira como Fogo-fátuo é construído. Em O corpo de Afonso, seu curta-metragem realizado em 2012, o diretor imagina como seria a compleição física de Dom Afonso Henrique, primeiro rei de Portugal, a partir de um casting de rapazes torneados e naturalmente cheios de potência erótica. Há uma dicotomia óbvia, não por isso menos interessante, em observar o jogo proposto por esta vivacidade ainda presente, mas agora aprisionada pelas areias do tempo e da velhice, e a reticência limitadora desse corpo quando jovem. O príncipe é um bibelô que quer ser bombeiro, quer ajudar a mitigar os fogos que queimam seu reino, quer saber como é experimentar os fogos de outros homens.

 

Cena de Fogo-fátuo
3.

É uma imagem muito específica: La Mascarade nuptiale, pintura finalizada em 1778 pelo pintor português José Conrado Roza, abençoa e emoldura o corpo do rei moribundo. Retratando um conjunto de personagens negros que se vestem e emulam as posições e operações da elite da época, muito se debate se o quadro tem a pretensão de servir como um reparador histórico, de encaixar os corpos oprimidos pelo poder português no centro de imagens e papéis que lhes foram negados, ou se na verdade Roza opera pelo viés do grotesco e faz essa transferência de protagonismo quase como quem registra uma atração circense. A dualidade da própria gênese da obra oferece ainda outra camada de complexidade ao retornarmos para o mundo do jovem príncipe Alfredo e da paixão que surge por Afonso, bombeiro com nome de rei, que se torna seu instrutor na academia. Recentemente assisti o curta-metragem pernambucano Casa Forte (2013), realizado por Rodrigo Almeida, em que dois homens, um branco e um negro, tecem monólogos sobre como raça e classe são porções inextricáveis, ainda que bastante culposas e repletas de reticência, da formação de seus desejos. Me parece que João Pedro Rodrigues é menos permissivo com a perversidade do príncipe que decide brincar junto ao seu povo e elege um corpo preto como objeto de desejo. Ele não nega que esse desejo pode sim ser legítimo, que nesse campo de disputa algo como um amor pode florescer, que o 69 que esses dois homens fazem, estimulando seus pênis de borracha, pode render um gozo muito fortuito de ambos os lados. Mas não foge do fato de que, algumas décadas à frente, o rei branco estará definhando e a democracia viverá num corpo preto.

 

4.

É uma imagem não tão específica. E talvez nem seja uma imagem. É uma compreensão estranha do movimento curioso que a última onda do cinema contemporâneo mundial parece estar surfando. Acontece neste Fogo-fátuo, acontece com Radu Jude na Romênia, acontece com alguns cineastas brasileiros, sobretudo com aqueles inscritos no universo LGBTQIA+. E o que acontece é a realização de que o debate social e político urgente não necessariamente precisa estar atrelado à rigidez formal e à dureza narrativa. Fogo-fátuo é uma discussão muito séria sobre herança colonial, racismo, identidade nacional e cultural, mas é também um musical tecido sobre cantigas de roda infantis, é uma videodança alegre que cita Não existe amor em SP, de Criolo, enquanto bombeiros bailam desajeitados, é uma comédia física sobre bombeiros trapalhões, e nenhuma dessas abordagens entra em confronto com as outras. Se não podemos dançar, não é nossa revolução.

* Felipe André Silva, poeta e cineasta, dirigiu, entre outros, os longas Santa Monica (2015) e Passou (2020). Atuou também como produtor e preparador de elenco em diversos projetos.