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Inventário de cicatrizes

09 de janeiro de 2025

O filme Baby está em cartaz no cinema do IMS Paulista e IMS Poços em janeiro.

 

Depois da justa euforia em torno de Fernanda Torres e Ainda estou aqui, entra em cartaz nesta quinta-feira outro filme brasileiro aplaudido mundo afora: Baby, de Marcelo Caetano, premiado em Cannes, Biarritz, Huelva, Havana e Rio de Janeiro, entre outros festivais.

O entusiasmo se justifica. É uma obra ao mesmo tempo delicada e contundente, ao abordar a trajetória do jovem negro Wellington (João Pedro Mariano), aliás Cleber, aliás Baby, que acaba de completar 18 anos e ser liberado da Fundação Casa (a antiga Febem), onde cumpriu pena por algum delito que não saberemos bem qual foi. Ao que parece, ele botou fogo na escola onde era sistematicamente hostilizado e agredido por conta da sua orientação sexual.

 

O corpo e a cidade

O que veremos então, ao longo de um par de horas, são os enlaces e embates desse corpo vibrante e vulnerável com outros corpos e com a metrópole que os envolve, a cidade de São Paulo, apresentada como um organismo vivo e complexo, que ao mesmo tempo atrai, ameaça, fascina e repele.

Um dos grandes trunfos do filme é, justamente, o modo como a cidade pulsa e respira, tanto em seu centro nervoso (República, Ipiranga, São João, Grandes Galerias...) como em sua maltratada periferia. Não por acaso várias cenas importantes acontecem no transporte público: ônibus, trem, metrô. E uma das melhores locações é a pensão esquálida onde Baby se aloja com um parceiro mais velho, Ronaldo (Ricardo Teodoro), quase debruçada sobre uma linha de trem.

A relação entre Baby e Ronaldo, que está no centro da narrativa, é examinada em suas múltiplas dimensões. Há, obviamente, o intercurso homoerótico físico, carnal, mas também um aspecto de camaradagem, parceria, e uma relação paternal, de proteção e ensinamento. De certo modo, Ronaldo encarna a promessa de satisfação das várias carências de Baby: de afeto, de sexo, de acolhimento, de orientação. Claro que é peso demais para um só indivíduo, ele próprio às voltas com seus problemas materiais e existenciais.

Numa das cenas mais expressivas, Baby mostra a Ronaldo as cicatrizes que ganhou ao longo da vida, em casa, na rua, no colégio, na Febem. Esse inventário de cicatrizes terá uma espécie de rima invertida perto do final do filme, quando os dois se reencontram por acaso num ônibus.

 

Simulacros de família

Desde o dia em que sai da Fundação Casa, o que Baby procura é uma família que o acolha. A sua, logo percebemos, fugiu dele. O rapaz acaba encontrando então simulacros de família: os amigos gays e trans da República e sobretudo o lar da ex-mulher de Ronaldo, Priscila (Ana Flavia Cavalcanti), que está casada também com uma moça mais nova (Bruna Linzmeyer). Juntas, elas criam o filho pré-adolescente de Ronaldo e Priscila.

É nessa amorosa família postiça que Baby encontra seu melhor refúgio, ainda que provisório. Mas não há nada como o reencontro clandestino com a mãe verdadeira (Kelly Campello), numa das cenas mais tocantes do cinema recente, pela maneira enxuta, silenciosa e intensa com que é construída.

Baby, em suma, consegue aquilo que só as grandes obras de arte alcançam: mostrar os personagens em sua singularidade irredutível e, ao mesmo tempo, realçar seu substrato humano universal, o que permite que qualquer um de nós se identifique com eles, vivencie suas dores e suas alegrias.