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Bahia, onde o Brasil não acaba

05 de setembro de 2025

O filme 3 obás de Xangô está em cartaz nos cinemas do IMS Paulista.

 

A mais breve sinopse de 3 obás de Xangô, de Sérgio Machado, diria: “documentário sobre a amizade entre Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé”. Não deixa de ser verdade, mas acontece que a interação afetiva e intelectual entre esses três artistas catalisa, em grande parte, a rica cultura afro-brasileira da Bahia, em especial da cidade de Salvador. Essa circunstância faz do filme uma obra única de pesquisa, reflexão e celebração.

Embalado pela prosa sedutora de Jorge Amado, pelo canto amoroso de Dorival Caymmi e pela sensualidade elegante do traço de Carybé, o filme flui de modo tão envolvente que parece se fazer “espontaneamente”, ou de já ter nascido pronto. Na verdade, é fruto de um intenso trabalho de pesquisa e de uma costura impecável de imagens e sons das mais variadas texturas e origens: trechos de documentários, cenas de filmes de ficção, entrevistas, reportagens, fotos, depoimentos.

 

Personagens e ambiente

O “pano de fundo” formado por esse material heterogêneo nunca se sobrepõe à voz dos protagonistas e ao intercâmbio afetivo entre eles. Há como que uma simbiose entre fundo e figura, personagens e ambiente, algo que já havia sido alcançado, em parte, pelo documentário Samba Riachão, de Jorge Alfredo, sobre o sambista baiano Clementino Rodrigues, o Riachão.

O escritor, o cantor/compositor e o artista plástico são, por um lado, frutos da cultura popular baiana; por outro, ajudaram a fixar no imaginário brasileiro e internacional a imagem de uma Bahia mestiça, mágica e sensual. Alguém chega a dizer no documentário, sem exagerar, que os três “inventaram a Bahia”.

O único deles que nasceu em Salvador foi Caymmi. Jorge veio de Itabuna e Carybé de Buenos Aires. Mas os três se encontraram em Salvador e se tornaram, além de amigos fiéis, obás de Xangô, isto é, embaixadores do culto ao orixá no mundo laico.

A história de Carybé (nascido Hector Julio Páride Bernabó) é particularmente ilustrativa. Durante uma turnê de Carmen Miranda em Buenos Aires, um músico faltou e Carybé foi convocado a substituí-lo, tocando pandeiro. Depois de ler Jubiabá, de Jorge Amado, o jovem portenho decidiu ir a Salvador para conhecer o bar Lanterna dos Afogados, onde se passava parte da ação do romance. Não encontrou o bar, que era fictício, mas se apaixonou pela cidade e de lá nunca saiu.

 

Cultura afro-brasileira

Ainda que o tom geral de 3 obás de Xangô seja festivo, brejeiro, dionisíaco, não se deixa de lado a repressão e o preconceito que pesaram durante séculos (e ainda pesam) sobre a população afro-brasileira e sua cultura: o candomblé, o samba, a capoeira. Imagens de arquivo são eloquentes nesse sentido, mostrando terreiros invadidos, capoeiristas presos, etc. Algo que parecia superado, mas que hoje volta a ameaçar com o fanatismo agressivo de certas igrejas neopetencostais.

Os depoimentos colhidos para o filme, pertinentes e iluminadores, não são de acadêmicos ou “especialistas”, mas de gente diretamente envolvida com os personagens: dois filhos de Caymmi (Danilo e Dori), uma filha de Jorge Amado (Paloma), Gilberto Gil (que herdou de Caymmi o título de obá de Xangô) e uns poucos mais.

O documentário é também o resgate de uma rica iconografia baiana, que vai de trechos dos pioneiros Banana da terra (1939), de Ruy Costa, e Cidade do Salvador (1949), de Humberto Mauro, até filmes das últimas décadas, incluindo dois do próprio Sergio Machado: Cidade Baixa (2005) e Quincas Berro D’Água (2010), além de cenas de adaptações de outras obras de Jorge Amado: Dona Flor (Bruno Barreto), Tenda dos Milagres (Nelson Pereira dos Santos), etc.

Sem contar os desenhos, quadros e painéis de Carybé e as esplêndidas fotos em preto e branco de Pierre Verger, uma espécie de quarto mosqueteiro do trio protagonista. Verger, fotógrafo e antropólogo francês que se radicou na Bahia e se converteu em babalaô, era o mais “purista”, não admitindo o sincretismo do candomblé com outras tradições culturais. Um belo documentário sobre ele é Pierre Fatumbi Verger: mensageiro entre dois mundos (2000), de Lula Buarque.

 

Gaiatice baiana

Boa parte das conversas e peregrinações dos amigos (inclusive a terreiros de candomblé) em 3 obás de Xangô vem do documentário Jorge Amado (1995), de João Moreira Salles. Dali, salvo engano, saiu uma das passagens mais divertidas do filme, em que o escritor praticamente induz Carybé a entoar uma cançoneta pornográfica. É um momento sublime de gaiatice profundamente brasileira, em que dois grandes artistas maduros aparecem como meninos marotos.

Se, como cantou Caymmi, “quem não gosta de samba bom sujeito não é”, quem não gosta da Bahia há de ser uma pessoa muito triste.

Em tempo: roubei o título deste texto de uma crônica memorável de Arnaldo Jabor.