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A primeira vez

09 de setembro de 2021

Há poucas coisas mais interessantes para os cinéfilos que os primeiros filmes de cineastas que depois se tornariam importantes e influentes. Geralmente eles trazem, ao menos em esboço, obsessões temáticas e elementos de estilo que encontramos em sua filmografia posterior. É o caso de três débuts disponíveis nos canais de streaming: De punhos cerrados (1965), de Marco Bellocchio, Estranhos no paraíso (1984), de Jim Jarmusch, e Ela quer tudo (1986), de Spike Lee. Os dois primeiros estão na plataforma gratuita do Sesc.

Os três foram filmados em preto e branco: o de Bellocchio porque ainda era uma opção comum em sua época (meados dos anos 1960) e os outros dois por uma questão de estilo. Coincidentemente, tanto Jarmusch como Lee foram alunos de Martin Scorsese na New York University, e o filme mais marcante deste até então tinha sido Touro indomável, com o magnífico preto e branco da fotografia de Michael Chapman. Mas vamos aos filmes.


De punhos cerrados

De punhos cerrados põe em cena a tragédia de uma família tradicional e disfuncional da região da Emilia Romagna, no norte da Itália: mãe viúva e cega, três filhos e uma filha. Uma perturbação mental hereditária parece afetar pelo menos dois membros da família, os dois irmãos mais novos, Alessandro (Lou Castel) e Leone (Pier Luigi Troglio).

O irmão mais velho, Augusto (Marino Masé), é o único que trabalha fora e tem uma vida social mais convencional. A irmã, Giulia (Paola Pitagora), parece dirigir a ele um amor um pouco mais que fraterno, ao mesmo tempo em que é amada de modo igualmente dúbio por Alessandro. Essa família que parece saída de uma peça de Nelson Rodrigues vive toda num casarão (ou melhor, uma villa) perto da cidade de Bobbio.

Alessandro é o personagem principal, do ponto de vista dramático. É ele que concentra as tensões psíquicas e eróticas subterrâneas e pensa em dar cabo da família toda, incluindo a si mesmo, deixando apenas Augusto livre para seguir uma vida saudável e bem-sucedida. Seu caráter ambivalente, entre a carência e o desejo de destruição, se reflete até no nome: ora o chamam de Ale, ora de Sandro.

Está presente, portanto, um dos temas recorrentes de Bellocchio: o que há de doentio, de rançoso e potencialmente explosivo na família tradicional católica italiana. Não por acaso o filme foi atacado pela Igreja, como seriam tantos outros do diretor de O diabo no corpo, Vincere e A bela que dorme. O que “falta” aqui, quando se pensa na sua obra como um todo, é a dimensão mais expressamente política, de discussão do poder de um ponto de vista mais amplo. Tudo é concentrado em relações de aliança e dominação entre quatro paredes.

A maneira como Bellochio constrói sua narrativa é peculiar. Todas as cenas parecem começar já no meio, como se tivéssemos chegado um pouco tarde para entender bem o que se passa. Nada se deixa captar por inteiro, nem os acontecimentos nem a vida interior dos personagens. A ambiguidade dá o tom, até mesmo na fronteira tênue entre o acidente e o crime premeditado. É um cinema da inquietação, mais de perguntas que de respostas.

Estranhos no paraíso

Se as criaturas de Bellocchio estão fincadas no passado, condenadas pela pesada herança da cultura e do sangue, os personagens de Jarmusch parecem quase sempre deslocados, em trânsito, fora do lugar. Não por acaso, Estranhos no paraíso começa e termina num aeroporto. Não é, a rigor, seu primeiro longa-metragem. Antes, ele havia dirigido o pouco conhecido Férias permanentes (1980). Mas foi Estranhos... que o colocou no mapa do cinema mundial, com prêmios em Cannes, Locarno e Sundance. Em Cannes, aliás, ganhou o Câmera de Ouro, destinado a longas de estreantes.

O enredo é um fiapo: a jovem húngara Eva (Eszter Balint) chega de Budapeste de surpresa à quitinete do primo Willie (John Lurie), em Nova York, e fica ali por dez dias, antes de partir para Cleveland e se hospedar com uma tia dos dois. O choque cultural suscitado por essa breve convivência forçada é puro Jarmusch. As faíscas provocadas pelo atrito iluminam brevemente aspectos da cultura e do way of life norte-americano, da música à culinária, passando pelas roupas e pela linguagem do dia a dia.

Todo o filme é construído em planos-sequência separados por lentos fadeouts. A câmera se move o mínimo necessário, sempre para acompanhar o movimento dos personagens, e às vezes deixando a eles próprios fora de quadro. Uma economia de meios que se confunde com exercício de estilo.

Quando lançado, em meados dos anos 1980, muitos desdenharam o filme como exibicionismo vazio e decretaram que o cinema de Jarmusch era uma modinha passageira. Não era. A capacidade do cineasta de observar as bordas da existência, de dar vida aos tempos mortos, reapareceria de inúmeras maneiras em sua produção posterior, refinada e elevada quase a uma filosofia num filme como Paterson, por exemplo.


Ela quer tudo

Se o cinema de Spike Lee costuma combinar em doses variadas a luta política contra a discriminação racial, por um lado, e por outro a exaltação da cultura afro-americana, entendida em seu sentido mais amplo, seu primeiro longa-metragem coloca a ênfase nesta segunda dimensão. Na história da bela e insaciável Nola Darling (Tracy Camilla Johns), temos uma observação ao mesmo tempo irônica e afetuosa de alguns modos de vida da população negra do Brooklyn nova-iorquino.

Os três namorados que Nola mantém simultaneamente representam maneiras diferentes de os negros se colocarem na sociedade norte-americana atual (ou, em todo caso, dos anos 1980): Jamie (Tommy Redmond Hicks) é o trabalhador honesto, funcionário de escritório; o narcisista Greer (John Canada Terrell) é o negro aburguesado e até certo ponto embranquecido, que só pensa em dinheiro e ostentação; e o desocupado Mars (Spike Lee) é o malandro boa-praça que não se leva demasiado a sério.

A própria Nola é a jovem negra altiva e independente, trabalhando como diagramadora para editoras e fazendo sua arte pessoal de pinturas e colagens. Com sua “honestidade brutal”, nas palavras de um dos namorados, deixa os homens perplexos e desorientados. É, ela própria, uma declaração política, desafiando alegremente códigos e costumes. As cenas de sexo são uma celebração da beleza de corpos negros. Política afirmativa é isso, entre outras coisas.

Ela quer tudo é um filme de baixíssimo orçamento, rodado em doze dias e com tão pouco negativo que boa parte das cenas foi rodada em take único. Disso decorre uma certa irregularidade, mas também um frescor irresistível. É, em grande medida, uma produção familiar: a bela trilha jazzística foi composta pelo pai do diretor, Bill Lee, e Joie Lee, irmã de Spike, interpreta a ex-companheira de apartamento de Nola Darling. Além de atuar, Spike Lee escreveu, dirigiu e montou o filme.

A estrutura narrativa adotada, a de um falso documentário em que os personagens falam para a câmera sobre a protagonista, permite uma certa economia expositiva e, de quebra, acentua o humor e a ironia. Ao mesmo tempo, sugere uma curiosa aproximação com outro “primeiro filme”, Um assaltante bem trapalhão, de Woody Allen.

De certa forma, Spike Lee faz a crônica da população afro-americana do Brooklyn como Allen faz a da comunidade judaica de Manhattan e Scorsese a da colônia ítalo-americana de Little Italy. Cada um com seu estilo, sua cultura e seu olhar.


Nos cinemas

Nas salas de cinema estreia nesta quinta-feira, 9 de setembro, um filme excepcional, o documentário A última floresta, de Luís Bolognesi, sobre o qual escrevi quando foi exibido no festival É Tudo Verdade. Ganhou o prêmio do público na mostra Panorama do Festival de Berlim, mas é sobretudo pelo público brasileiro que precisa ser visto.