Um filme doméstico de quase duas horas? Bem-vindos de novo, de certa forma, é isso – e é também um dos filmes mais interessantes, intensos e envolventes da temporada. É o primeiro longa-metragem de Marcos Yoshi e entra em cartaz nos cinemas nesta quinta-feira (15/6).
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Membro da terceira geração de uma família de imigrantes oriundos do Japão, Yoshi aborda essa acidentada saga familiar concentrando o foco em seus pais, Roberto e Yayoko Yoshisaki, que no final dos anos 1990 decidiram “voltar” ao Japão para juntar dinheiro e financiar os estudos dos filhos, então adolescentes. Sua ideia era ficar dois anos, mas acabaram ficando treze. Quando voltaram, os filhos (Marcos e duas irmãs) já eram adultos e tinham suas vidas encaminhadas.
Afeto e trabalho
A difícil meta de refazer os laços afetivos, de reconstruir uma família fragmentada, se entrelaça com a tarefa não menos difícil de encontrar trabalho e conseguir sustento material. O casal acaba se associando a um parente e trabalhando duro num restaurante numa cidade do Mato Grosso do Sul. Quando o negócio se desfaz, Roberto e Yayoko voltam à estaca zero e, para não depender materialmente dos filhos, encaram de novo a possibilidade de, já cinquentões, voltar ao Japão e trabalhar doze horas por dia para sobreviver.
O resumo acima não faz jus à riqueza narrativa do filme, em que acontece de tudo, com locações em cidades do Japão, de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul e plot twists dignos de uma boa série dramática. Só que o roteirista imaginativo, no caso, é a própria vida.
Na hábil articulação de material de arquivo (basicamente home movies e fotos de família) com cenas filmadas pelo próprio diretor-narrador, produz-se o encanto, quase o milagre de Bem-vindos de novo: quanto mais concentra o olhar em seus familiares, mais Yoshi constrói um amplo painel da imigração japonesa ao Brasil e do fluxo migratório inverso, o dos decasséguis brasileiros que vão trabalhar no Japão.
Pelas beiradas de Bem-vindos de novo acompanhamos um pouco desse processo histórico rico e complexo, ao mesmo tempo em que constatamos várias mazelas do nosso país, algumas delas crônicas, como o desemprego e o preconceito “etarista” no mercado de trabalho, outras recentes, como o mascaramento da precarização do trabalho sob o rótulo enganoso do “empreendedorismo”.
Família e sociedade
Tudo isso passa pelo corpo e pela alma dos familiares filmados por Marcos Yoshi. Seu olhar é afetuoso, mas desprovido de condescendência. Há amor e humor, e a emoção isenta de sentimentalismo se reflete por exemplo no uso discreto da música, quase imperceptível. Talvez não seja exagero dizer que, pelos olhos do cineasta, passamos a conhecer e amar aquelas pessoas (pai, mãe, irmãs) tão corajosas, espirituosas e, no fim das contas, vulneráveis.
Uma vertente muito forte do cinema japonês é a das obras centradas na família e em suas transformações ao longo do tempo. Yasujiro Ozu é seu mestre supremo e Hirokazu Kore-eda é uma espécie de herdeiro bastardo. Por vias inesperadas, Bem-vindos de novo pode ser visto como um parente distante desse cinema em que a dimensão histórico-social passa pelas relações familiares.
Os letreiros finais do filme, depois de uma belíssima sequência sem palavras, informam que o Brasil é o país com a maior comunidade de nipodescendentes do mundo (dois milhões) e que nas últimas três décadas cerca de 600 mil decasséguis brasileiros fizeram o caminho de volta, buscando trabalho no Japão. O casal Yoshisaki faz parte desse contingente.
É célebre a frase de Tolstói: “Se queres ser universal, canta tua aldeia”. Marcos Yoshi foi além: ao cantar sua família, disse muito sobre centenas de milhares de pessoas dos dois lados do mundo.