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Riso sem alegria

04 de março de 2021

Ao contrário do que pode parecer, dada a proliferação de piadas prontas no noticiário político, são tempos difíceis para o humor. Borat: fita de cinema seguinte, que acaba de ganhar o Globo de Ouro na categoria melhor comédia ou musical, evidencia a dificuldade vivida pelo gênero num momento tão pouco gracioso do mundo.

 

 

O filme, que está no canal de streaming Amazon Prime Video, é dirigido pelo norte-americano Jason Woliner, mas, assim como ocorrera com o primeiro Borat (Larry Charles, 2006), seu verdadeiro autor é, em grande parte, o ator e co-roteirista britânico Sacha Baron Cohen. É ele que encarna o estapafúrdio repórter cazaque Borat, assim como Chaplin “era” Carlitos e Jacques Tati “era” o Monsieur Hulot.

Nesta sua segunda aventura, Borat volta aos Estados Unidos para levar um presente ao vice-presidente Mike Pence, como forma de melhorar as relações norte-americanas com seu país e escapar da pena de morte. Ocorre que sua filha adolescente, Tutar (Maria Bakalova), entra clandestinamente na carga e come durante a viagem aquele que seria o presente (um macaco). Absurdo desde a origem, o argumento servirá de pretexto para um mergulho na América republicana reacionária, racista e ultraviolenta, e ao mesmo tempo para discutir a situação da mulher na sociedade contemporânea.

O problema – não de Borat, mas do filme – começa antes da própria viagem. Para fazer graça e contrastar o Cazaquistão atrasado e rural ao mundo urbano moderno, os realizadores forçam a mão no retrato da sociedade cazaque, onde, de acordo com o filme, as filhas mulheres são tratadas como animais e alojadas junto com os porcos e galinhas. Quando chegam aos 13 anos, elas já podem casar e ser colocadas em jaulas exclusivas por seus maridos. Aos 15, a selvagem Tutar já é considerada “encalhada” pelos padrões locais.

Desse inferno com ares pré-medievais, muda-se para o suposto paraíso do consumo e da modernidade, os Estados Unidos. E é aí, claro, que o filme fica interessante, por satirizar o que há de arcaico, retrógrado, bárbaro e primitivo no coração da América.

 

Documento e encenação

O dispositivo narrativo é semelhante ao do primeiro Borat: simulando um registro documental ou de filme de viagem, mostra-se o protagonista interagindo com “pessoas comuns” e personagens conhecidos, como o próprio Mike Pence, o advogado e ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani, o ator Tom Hanks, etc.

Voluntária ou não, a precariedade dos registros, com sua montagem vacilante, seus zooms abruptos e suas imagens ocasionalmente desfocadas, produz uma impressão de incerteza, em que já não sabemos quem é personagem real e quem é ator, quais diálogos são “autênticos” e quais são encenados.

Um exemplo: numa loja de artigos rurais, Borat diz ao vendedor (possivelmente o proprietário) que quer comprar um botijão de gás para colocar uma porção de ciganos numa van e matá-los por intoxicação. O homem lhe pergunta quantos ciganos seriam. Ele responde: uns quinze. O homem: “Então leve este recipiente maior. O outro não é suficiente”. É provável que o diálogo tenha sido escrito, mas a simples possibilidade de que possa ter ocorrido “de verdade” causa mais calafrios do que risadas.

O humor negro chega ao ápice numa cena em que Borat, fantasiado como um judeu de caricatura, entra numa sinagoga e conversa com duas senhoras idosas, uma delas sobrevivente do Holocausto. Ele havia lido num site neonazista (e acreditado) que o Holocausto nunca existiu. A velhinha lhe garante que existiu sim. Ele fica todo feliz, porque em seu país (de acordo com o filme, claro) o Holocausto é comemorado como uma festa nacional. Em tempo: a senhora judia, Judith Dim Evans, morreu antes de o filme ficar pronto e seus herdeiros estão processando Sacha Baron Cohen por tê-la enganado. Ele dedicou o filme a ela e jura que lhe contou que se tratava de uma encenação.

Em outros momentos, ator e equipe escaparam por pouco de ser linchados pela massa ultradireitista, como quando o protagonista invade uma Conferência de Ação Política Conservadora vestido como membro da Klu Klux Klan, e depois com uma máscara de Donald Trump. Ou num showmício republicano em que ele sobe ao palco e, apresentando-se como o cantor Country Steve, canta uma música fascistoide exagerando apenas um pouquinho as bandeiras antidemocráticas de Trump e companhia.

Também a jovem Tutar protagoniza cenas na fronteira entre a encenação e o documentário. Numa reunião de madames republicanas religiosas ela se surpreende ao saber que elas dirigem carros e diz que enfiou o dedo na vagina e descobriu um prazer explosivo, para consternação e escândalo de todas.

 

Armadilha para Giuliani

Mas o momento crucial, que causou furor antes mesmo de o filme ser lançado, é a falsa entrevista que a filha de Borat realiza com Rudolph Giuliani, supostamente para uma emissora de TV conservadora. Sem saber da farsa, o advogado de Trump e ex-prefeito de Nova York passa uma cantada na moça e a leva para um quarto de hotel.

Nota secundária, mas não tanto: a língua que Tutar fala no filme como se fosse cazaque na verdade é búlgaro, o idioma nacional da atriz Maria Bakalova. E as cenas da aldeia do Cazaquistão foram filmadas na Romênia. Esse samba do anglo-saxão doido mostra que, mesmo pretendendo fazer a sátira de sua própria cultura e política, os realizadores acabam por reforçar a ideia de sua superioridade sobre o “resto do mundo”. Como dizia um militar norte-americano no filme Avanti! Amantes à italiana, de Billy Wilder: “Tudo bem que os estrangeiros falem outra língua. Mas não poderiam falar, todos eles, a mesma língua?”

Para esculachar o conservadorismo truculento da América, Baron e sua turma engendraram um país que consegue ser muito pior e que concentra, magnificados, todos os males que se costuma atribuir às áreas mais atrasadas do Terceiro Mundo. Deram a esse lugar o nome de um país existente, o Cazaquistão. Se tivessem dado o nome de Brasil não iríamos gostar, ainda que em termos civilizatórios não estejamos numa situação lá muito boa.

De todo modo, o que fica da sátira corrosiva e um tanto brutal de Borat é a sensação de que seu humor tem muito mais de sarcasmo e exasperação do que de genuína alegria. Ele parece nos dizer que a vida em sociedade é um erro, em qualquer latitude ou hemisfério. Ao contrário do que desejava Oswald de Andrade, ali o humor não rima com amor.