A morte habita à noite, de Eduardo Morotó, que estreia nesta quinta-feira em poucas e boas salas de cinema do país, apresenta-se como “inspirado nos escritos de Charles Bukowski”.
De fato, quem leu algum livro do autor norte-americano nascido na Alemanha, ou mesmo viu algum filme baseado em sua obra (Barfly, Crônica do amor louco), reconhecerá de imediato seu universo: seres à margem – desocupados, bêbados, prostitutas – se debatendo entre um cotidiano sórdido e os sonhos mais sublimes.
No entanto, nada soa transplantado ou fora de lugar nesse drama que acompanha o dia a dia de Raul (Roney Villela), um escritor cinquentão fracassado que vive de subempregos no centro velho do Recife. Um dia ele trabalha numa barraca de peixe no mercado, outro dia numa oficina de autopeças, e tem casos confusos com mulheres bonitas e mais jovens. À parte isso, bebe e fuma o tempo todo. O filme não se afasta dele nem por um momento.
Naturalismo e transcendência
O que o diretor Eduardo Morotó consegue, em primeiro lugar, é construir de modo naturalista o mundo físico, geográfico, de Raul: a praça do Sebo, as ruelas apinhadas e sujas, o Mercado São José. Quase dá para sentir os cheiros do mercado, a umidade dos quartinhos esquálidos de pensão, o hálito de álcool do protagonista e de suas parceiras.
Mas a esse naturalismo se sobrepõe sutilmente um sentido de transcendência, uma percepção da morte e da passagem silenciosa do tempo.
A primeira cena é exemplar. Raul e sua companheira, Ligia (Mariana Nunes), tomam um vinho barato e conversam futilidades na copa/cozinha de seu diminuto apartamento. De repente um corpo passa em queda vertical pela janela e ouvimos em seguida seu baque surdo no chão. Os dois se levantam, vão até a janela, olham para baixo, Ligia fica abalada, recusa a sugestão de voltarem a comer e beber, sai de cena para vomitar ou chorar no banheiro. Raul volta para a mesa, belisca a comida no prato, toma mais um gole de vinho, como que digerindo o acontecimento. Tudo isso se passa dentro de um único plano fixo.
A “indesejada das gentes” voltará a se anunciar ao longo do filme, em meio a registros aparentemente banais do cotidiano, até a bela e estranha sequência final, em que morte e vida se entrelaçam de modo inextricável.
O trabalho do tempo
Raul é um personagem construído no limiar entre o vigor e a decadência. Graças ao roteiro, à direção, à maquiagem e, sobretudo, à notável atuação de Roney Villela, no limite da autoironia, testemunhamos o trabalho do tempo agindo sobre seu corpo e seu espírito.
O protagonista expõe sua nudez em duas cenas refratadas. São dois banhos, filmados do mesmo ângulo e mais ou menos à mesma distância, em dois lugares diferentes. No primeiro, no banheiro pequeno mas decente de seu apartamento com Ligia, ele aparece como um homem ainda viçoso e vistoso (gosta de se gabar das “lindas pernas”), sob uma ducha vigorosa. No segundo, sob um fio d’água de um banheiro imundo de pensão, parece mais um ancião, derrubado pela tosse e pela falta de firmeza.
As cenas que se repetem, aliás, configuram uma estratégia narrativa: duas vezes vemos Raul raspar escamas de peixe no mercado, duas vezes o vemos exercitar-se numa bicicleta ergométrica largada num fundo de prédio, atulhado de trastes e material de construção. A cada vez o personagem oculto é o tempo implacável.
A figura combalida de Raul contrasta ou se complementa com a juventude atrevida e esfuziante de Cássia (a ótima Endi Vasconcelos), que entretanto talvez seja a grande personagem trágica do filme.
A construção visual e dramática adere à trajetória trôpega do protagonista e de suas companheiras. Há humor, revolta, melancolia e afeto, tudo misturado. O tom é quase de delírio etílico numa cena como a da captura de um pato numa fonte de praça, também filmada numa única tomada.
Em tempo: a fala da enigmática personagem Inês (Rita Carelli), na cena final, mistura trechos do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa (“O coração, se pudesse pensar, pararia”; “Uns governam o mundo, outros são o mundo”), com pichações escritas no muro, como “Não se mate, tem Carnaval ano que vem”. Talvez esta última frase resuma tudo.
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Publicou, entre outros, André Breton, Brasil: Anos 60 e Futebol brasileiro hoje, e participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80, Folha conta 100 anos de cinema e Os filmes que sonhamos. Veja textos da coluna semanal sobre cinema que assinou no Blog do IMS entre setembro de 2011 e dezembro de 2018.