O ano começa com uma pequena obra-prima em cartaz nos cinemas: o japonês Roda do destino, de Ryûsuke Hamaguchi. É, na verdade, um conjunto de três histórias independentes, quase três médias-metragens autônomos, que só se interligam pelo tema filosófico comum, a relação entre o acaso e o que costumamos chamar de destino.
Mas que ninguém espere uma discussão teórica, explanatória, desses assuntos. O encanto do filme consiste justamente em fazer o abstrato brotar do concreto, a reflexão nascer naturalmente das situações narradas.
É difícil resumir os três relatos sem cometer algum tipo de spoiler. Digamos simplesmente que, no primeiro, duas grandes amigas se relacionam amorosamente com um mesmo homem, sem que uma delas tenha ciência disso; no segundo, uma universitária tenta seduzir um ex-professor para vingar seu jovem amante humilhado em outros tempos por ele; no terceiro, duas ex-colegiais se encontram por ocasião de uma comemoração de vinte anos de formatura.
Desejo feminino
São todos personagens esclarecidos, de classe média, vivendo em grandes cidades modernas, com idades entre os vinte e os quarenta anos. No centro de tudo, como um dínamo a determinar o curso dos acontecimentos, está o desejo feminino, ou sua frustração. Os homens, mesmo quando parecem ser o pivô da ação, são pouco mais que coadjuvantes.
Hamaguchi filma esses encontros e desencontros com uma rara combinação de precisão e sutileza. Sua poesia discreta se faz em grande parte de silêncios e elipses que instigam o espectador a preencher as lacunas com sua própria imaginação, sua própria sensibilidade. Os personagens são ambíguos, contraditórios, e suas ações guardam um grau de imprevisibilidade.
No primeiro episódio (“Mágica, ou algo menos garantido”), dois finais alternativos suscitam a ideia de que, entre o acaso e o “destino”, entre o casual e o causal, existe a vontade humana, com a dimensão moral que a acompanha. Uma coincidência fortuita coloca no mesmo ambiente os três vértices do triângulo amoroso. O livre arbítrio de uma das personagens, a modelo Meiko (Kotone Furukawa), determinará as consequências que esse acaso terá na vida dos três.
Na narrativa seguinte (“De porta escancarada”), a armadilha de sedução planejada pela universitária (Katsuki Mori) contra o ex-professor (Shouma Kai) acaba por aprisionar inesperadamente a ela própria. A cena central do episódio – a leitura em voz alta, por ela, de uma passagem “quente” do livro escrito por ele – é uma das mais eróticas do cinema recente, sem que haja qualquer nudez ou contato físico. (E a porta da sala do professor, como sugere o título, está o tempo todo aberta.) O sexo, já disse alguém, é coisa mental. A transformação anímica vivida pelos personagens ao longo da cena é uma maravilha só atingida graças a uma encenação precisa e ao talento dos atores.
Correção de rota
Se, nesse segundo episódio, a vontade pessoal (da ex-aluna, no caso) acaba sendo atropelada em última instância pelo acaso – ou pelo inconsciente, diria a psicanálise –, o terceiro segmento (“Mais uma vez”) marca o triunfo do afeto e da imaginação sobre os limites impostos pela realidade.
O encontro das ex-colegiais – uma moça solitária que era discriminada na escola por sua homossexualidade (Fusako Urabe) e uma acomodada dona de casa (Aoba Kawai) – encena a sobreposição de vidas possíveis, a que se vive de fato e a que “poderia ter sido” se em tal ou qual encruzilhada tivéssemos tomado uma direção diferente.
Não à toa, as duas cenas que balizam a narrativa, nas escadas rolantes da estação de trens de Sendai, configuram o acaso: a primeira, o acaso puro, ou mais ainda, o acidente, o erro; a segunda, o acaso construído, inventado, como uma espécie de correção de rota, de conserto do destino. Esta última é, para a minha sensibilidade, um dos momentos mais sublimes do cinema contemporâneo, deixando para trás o mero psicodrama ou o mero sentimento agridoce da nostalgia e criando o que só podemos chamar de poesia. Em seu abraço as duas mulheres não fazem apenas um país (como cantava Marina), mas todo um mundo.
Ryûsuke Hamaguchi é um fenômeno. Roda do destino conquistou o grande prêmio do júri no festival de Berlim de 2021. Alguns meses depois, seu filme seguinte, Drive my car, foi premiado em Cannes e aclamado pela crítica mundial. Passou no Festival do Rio, perdi. Cabe esperar que chegue logo aos nossos cinemas. Hamaguchi, definitivamente, não é um cineasta qualquer.