Numa entrevista recente, Pedro Almodóvar enalteceu o sentimento da amizade, em contraposição ao amor erótico e/ou romântico. Em lugar da turbulência por vezes tirânica deste último, a amizade oferece a constância, o altruísmo, a ausência de julgamento ou cobrança. “E quem há de negar que esta lhe é superior?”, cantou seu amigo Caetano Veloso.
Essa ideia está por trás, ou antes por dentro, do filme mais recente do cineasta, o esplêndido O quarto ao lado, ganhador do Leão de Ouro em Veneza.
Inspirado no romance da norte-americana Sigrid Nunez O que você está enfrentando (publicado no Brasil pela editora Instante), Almodóvar coloca em cena duas velhas amigas que na juventude trabalharam juntas numa revista e depois se afastaram: Ingrid (Julianne Moore) se tornou escritora de sucesso e Martha (Tilda Swinton) correu o mundo como jornalista de guerra.
Elas se reencontram quando Ingrid fica sabendo da doença terminal da amiga e resolve procurá-la. O filme se concentra então na convivência entre as duas enquanto Martha se prepara estoicamente para morrer. Boa parte da ação se passa na espaçosa casa de montanha que as duas dividem enquanto esperam pelo fim.
Joyce e Hopper
Se o enredo se baseia no livro de Sigrid Nunez, duas outras referências servem de régua e compasso para a construção estética de O quarto ao lado. A inspiração filosófico-literária vem do conto Os mortos, de James Joyce, e do filme baseado nele, Os vivos e os mortos, de John Huston. E a elaboração visual dialoga com o universo pictórico de Edward Hopper, em que as cores vivas (marca registrada de Almodóvar) são suavizadas por uma luz outonal e uma atmosfera de mistério e silêncio.
Ambas as influências são explicitadas na narrativa, o que implica dizer que o filme de certo modo expõe de forma transparente seus alicerces. O que anima o conjunto, porém, é o profundo humanismo de Almodóvar, que ressalta sempre a liberdade moral dos indivíduos e a relação de afeto entre eles. Mais ou menos como em Dor e glória, o amor erótico – que marcou boa parte da produção do cineasta – comparece aqui apenas como eco amortecido, em lembranças e evocações.
O íntimo e o social
Nesse sentido, o personagem Damian (John Turturro), espécie de vértice masculino do triângulo, ex-amante das duas amigas, serve como um lembrete dos tempos idos de violência e paixão. A par disso, é ele também, como ativista e divulgador científico, que introduz os temas atualíssimos da crise climática e da ascensão da extrema-direita. Na peça de câmara que é o filme, ele é a abertura para o mundo histórico e social.
Tudo somado, é uma obra de plenitude e maturidade de um artista que encara com altivez, mas também com serenidade e doçura, o tema da doença e da morte, sem abrir mão do humor maroto e iconoclasta que aprendemos a amar. Diretor que engrandece seus atores, aqui ele conta com a cumplicidade ativa de duas atrizes extraordinárias.
Estreias brasileiras
Sobrou espaço para indicar dois ótimos filmes brasileiros que entram em cartaz nesta quinta-feira: o drama Malu, de Pedro Freire, comentado aqui na semana passada, e o documentário sui generis O dia da posse, de Allan Ribeiro.
Rodado no apartamento do diretor no Rio de Janeiro durante o confinamento da pandemia de covid, O dia da posse tem como protagonista o jovem baiano Brendo Washington, namorado do cineasta, que expõe candidamente sua história pessoal e seu sonho de ser presidente da república, enquanto os dois observam a vida da vizinhança e Allan conversa ocasionalmente por vídeo com seus pais.
Dito assim, pode dar a impressão de uma ego trip desinteressante, mas poucos filmes expressam de modo tão delicado e franco as vicissitudes e potencialidades das relações afetivas contemporâneas, num mundo cada vez mais hostil, instável e imprevisível. Se existe um “cinema dos afetos”, O dia da posse é um de seus representantes mais legítimos.