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Cheguei a tempo de te ver acordar

05 de janeiro de 2024

Começo a escrita ouvindo Milton Nascimento, e acho que esse título (referente a música “Quem sabe isso quer dizer amor”) vai acabar fazendo sentido.

 

Voltar para Poços de Caldas é sempre voltar.

A cidade onde se nasce carrega um lugar singular dentro da gente, porque, por mais caminhos que se percorra na vida, ela ainda está lá. Embasando e embrasando as histórias, as memórias e as escolhas que se fizeram a partir dali.

Em 2010, quando eu tinha 18 anos, eu saí dessa cidade para ir fazer o curso de cinema, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). E isso mudou todo o meu destino, porque me jogou para paisagens e humanidades diferentes das que eu convivia até então. Mais que isso, me abriu possibilidades de futuro. Por isso eu fui. Com medo, mas fui.

Cursei a universidade, conquistei grandes amigos e parcerias, que me fortaleceram na escolha e na paixão pelo fazer cinema. Fundei, junto com meu amigo e sócio Ary Rosa, a produtora Rosza Filmes, e seguimos desde então fazendo filmes independentes, com a vontade de experimentar a linguagem cinematográfica tão grande quanto a de se comunicar de forma popular com poéticas negras. A partir daí, minha trajetória foi se visibilizando junto a essas narrativas que estão ancoradas no hoje, no cotidiano de encontros que acontecem no Recôncavo da Bahia. Em algum momento, parecia que eu tinha me tornado mais baiana, seguindo mais antenada e ancorada com as pautas e as discussões dessa região do que com a minha de nascença. E isso se deve muito a processos de identificação. A estar num espaço em que eu me reconheça junto com meus pares. Que valorize nossos corpos e nossa cultura.

Essa tem sido uma camada muito discutida nos últimos anos, em que o cinema nacional e as imagens audiovisuais passaram a ser questionados. Rejeitamos a naturalidade de fenótipos e estereótipos até então reconhecidos e reproduzidos, e brigamos – sim, muitas vezes a briga é necessária, porque falar com amor pode se equiparar a não ser ouvido – com veemência pelo nosso espaço. Nós, que não fomos criados para sermos cineastas, nem arqueólogos, nem curadores. E (pasmem!), ainda assim o tornamos e seguimos aqui.

Foi preciso trilhar uma carreira e uma vida fora de Poços para entender algumas questões fundamentais da filosofia e da prática.

Eu cresci com meus pais, Magali Custódio Nicácio e Rafael Nicacio Neto, e minha irmã, Letícia Nicácio, numa casa ao fim de uma rua sem saída no bairro São Jose, o Serrote (e só quem vive no Serrote pode chamar ele assim, combinado?). É um bairro periférico, por muito tempo considerado um dos mais violentos. E eu nunca entendi isso, porque, vivendo nele, me parecia um dos lugares mais doces e mais acolhedores da cidade. Sempre tinha alguém para dar bom-dia, para perguntar se estava tudo bem. Uma vizinhança que se ajudava e que se cuidava, atenta. Não à toa, era também um dos bairros que mais reunia a população negra dali. Havia questões precárias de saneamento, de transporte, de segurança. E, ainda assim, os moradores conseguiam botar beleza nas esquinas.

Recentemente, voltando de uma viagem para visitar minha família, eu peguei um táxi de madrugada e, no caminho, fiquei observando a paisagem. Como o bairro mudou, como as casas melhoraram, as estruturas das ruas também. Quando eu volto para Poços, parece que eu estou vendo as imagens da cidade e do bairro pela primeira vez, de novo. Talvez porque eu volte me sentindo sempre outra. E, então, nessa madrugada, foi pitoresco perceber que essas paisagens, elas estão comigo até hoje. E, quando eu paro para pensar no tipo de imagem que eu produzo, nas relações que vão definindo o formato de produção da nossa cinematografia, eu retorno para essas imagens e paisagens.

Lembrei da fala de um dos mestres da sétima arte, que escreveu uma vez que um cineasta é feito de todas as imagens que ele viu na vida. E, nesse sentido, ter nascido em Poços de Caldas, numa casa cercada por montanhas e com um céu vasto, que só Minas tem, me fez ser uma criança que gostava de olhar. Esse tempo da contemplação, quase pleno, que depois vai se perdendo. Mas que, no cinema, nós desejamos e idealizamos o tempo todo. Essa beleza da natureza, singela, cotidiana, que amanhece e escurece diante das nossas janelas. Isso me dá vontade de fazer cinema. E eu nunca sonhei com esse ofício, porque eu nem sabia que isso era pra mim. Mas o gostar de olhar sempre foi.

É engraçado porque, fazendo cinema, é muito comum se ouvir nas entrevistas a pergunta básica de “quais são suas referências cinematográficas?” E eu fujo dessa resposta, não porque eu não as tenha, mas porque elas não me parecem tão fixas como a pergunta. E porque, sinceramente, a vida me encanta e sempre me encantou muito mais. Tenho pouco tempo para ficar assistindo tela, já é tanta tela que eu vejo no dia a dia do trabalho. Quando posso, prefiro gastar meu tempo vivendo, com gente boa, cerveja gelada, e samba. E isso também está nas imagens do meu cinema.

Além disso, existe a construção do hábito, e cinema, no fim das contas, é sempre caro, para quem faz e pra quem quer consumir. Então eu entrei numa sala de cinema comercial pela primeira vez quando devia ter uns 10 anos. E isso não se repetiu muito, era algo distante.

Mas tinha nas férias uma programação que era uma das minhas coisas preferidas, o cineclube no Instituto Moreira Salles. E eu adorava aquele espaço. Assim que se encerravam as aulas, meus pais me levavam semanalmente. Era um espaço por vezes estranho, quase ninguém da minha escola e do meu bairro frequentava. Mas eu e meus pais estávamos ali. E foi então se criando um hábito. Um lugar onde, além das exibições, eu via quadros e exposições. Era diferente aquele ambiente, e, por estranho, me causava curiosidade – ainda que não houvesse um reconhecimento.

IMS Poços. Poços de Caldas, MG, 2024. Foto de Haroldo Gessoni

Assim, quando eu recebi o convite de integrar as comemorações de inauguração da sala de cinema do IMS em Poços de Caldas, essas memórias retornaram. Mas vieram jogadas para o movimento do presente. Uma alegria e um alívio de saber que filmes como O dia que te conheci (André Novais Oliveira) e Café com canela (Ary Rosa e Glenda Nicácio) estão agora fazendo parte desse espaço, que acolherá também a produção da própria cidade – uma cidade que também é preta. Finalmente, me sentir olhada e acolhida dentro da minha primeira casa. Em mais de dez anos produzindo cinema, será a primeira vez que um dos meus filmes será exibido em Poços, e isso é muito relevante.

Renovam-se as vocações diante da toada e da caminhada que o cinema brasileiro vem fazendo. Ramificam-se os corpos e as histórias. Expandem-se as imaginações e desejos de futuro.

Que voltar para Poços de Caldas possa ser, também, seguir, junto.