Quem ama o cinema e a música, e se interessa pela cultura brasileira das últimas seis décadas, não deve deixar de ler o alentado volume Cine Subaé – Escritos sobre cinema (1960-2023), de Caetano Veloso, organizado por Claudio Leal e Rodrigo Sombra e publicado pela Companhia das Letras.
Um dos grandes poetas da música popular de nosso tempo, Caetano sempre teve uma íntima ligação afetiva e intelectual com o cinema. Na adolescência, em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, chegou a pensar em ser cineasta. Foi para um jornal da cidade, O Archote, que escreveu suas primeiras críticas de filmes, tentando atrair a atenção de seus conterrâneos para as maravilhas do cinema europeu (sobretudo italiano e francês), arrancando-os da passividade acrítica com que recebiam os melodramas hollywoodianos e mexicanos.
As complexas relações de Caetano com o cinema industrial norte-americano, oscilando entre a admiração e a rejeição, formam uma das linhas mais interessantes da coletânea. Outros tópicos fecundos e recorrentes são sua produção musical para o cinema, com canções e trilhas; sua relação pessoal com determinados cineastas (Glauber, Bressane, Cacá Diegues, Almodóvar, Bertolucci); suas reflexões sobre ruptura estética e tradição, na música e no cinema; a presença dos filmes na concepção de suas canções; seus projetos cinematográficos não filmados e sua própria produção audiovisual, em videoclipes e principalmente no único longa-metragem que dirigiu, O cinema falado (1986).
Contra os consensos
O livro é de composição heterogênea, incluindo desde artigos mais alentados até trechos de entrevistas, textos de press-releases e posts de redes sociais, formando um conjunto extremamente vivo, em que encontramos uma inteligência inquieta, sempre disposta a contrariar os consensos preguiçosos e os preconceitos reinantes em cada época.
É assim, por exemplo, que ele desanca – em seu próprio longa e em entrevistas – um filme como Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, então incensado pelo público e pela maior parte da crítica. Para o compositor, tratava-se de um melodrama careta com verniz “artístico”. Outros alvos surpreendentes de sua língua ferina são Martin Scorsese, Sergio Leone e Ennio Morricone.
Alguém dirá que Caetano se manifesta assim só para ser do contra e chamar a atenção, mas não parece ser o caso. Um dos aspectos mais bonitos do movimento de sua inteligência e sensibilidade é o de rever constantemente o seu próprio juízo crítico. Por exemplo, ao mudar de opinião, ou pelo menos matizá-la, quanto às comédias de Woody Allen e aos melodramas de Douglas Sirk – ou mesmo ao reavaliar globalmente sua posição diante do grande cinema comercial norte-americano.
No fim das contas, o que prevalece é um amor incondicional ao cinema em todo o seu espectro, que vai de atração de feira (vide o entusiasmo do autor com o 3-D) a exploração do inconsciente e forma refinada de pensamento em imagens. Sem esnobismo, mas também sem ingenuidade.
Paixões duradouras
As mudanças e reconsiderações autocríticas não abalam, entretanto, algumas paixões duradouras: Fellini (e Giulietta Masina), Godard, Kurosawa, Kubrick e até mesmo o pouco valorizado René Clair de As grandes manobras (1955). Mais surpreendente, a meu ver, é seu entusiasmo por A grande beleza (2013), do qual exalta “a semelhança buscada e conseguida por Paolo Sorrentino com o mundo felliniano”. Ora, sempre pensei que os admiradores sinceros de Fellini deplorassem esse pastiche diluidor. Mas talvez a idiossincrasia seja minha.
As relações de Caetano com o cinema brasileiro são mais complexas. Amigo pessoal de Glauber Rocha, de Cacá Diegues e de Julio Bressane, adotou uma posição mais ou menos ecumênica na guerra incruenta (mas cruel) entre o Cinema Novo e o cinema experimental, dito marginal. Sempre fez questão de dizer que Terra em transe foi o deflagrador do projeto tropicalista, fez música para filmes de Leon Hirszman (São Bernardo) e Cacá (Tieta, Orfeu), apareceu como ator em Tabu e O mandarim, de Bressane. No cinema brasileiro contemporâneo, saudou o advento de criadores importantes como Jorge Furtado e Kleber Mendonça Filho e teceu louvores a obras menos bem-recebidas, como Reis e ratos (2012), de Mauro Lima.
Há caprichos e relaxos (para citar Paulo Leminski) nesse caleidoscópio de ideias, emoções e sensações suscitadas ao longo de seis décadas de relacionamento sério entre Caetano Veloso e o cinema. Para apreciar o conjunto com prazer e proveito não é necessário concordar com tudo o que diz o autor. Afinal, às vezes até ele discorda. Ou não?