A trajetória de Clint Eastwood, que acaba de completar 90 anos, ilumina como poucas o cinema e o imaginário norte-americanos das últimas seis décadas. É uma carreira profícua e robusta. Mesmo tendo começado tarde – seu primeiro papel principal veio aos 34 anos –, atuou em cerca de setenta filmes e dirigiu outros quarenta. E segue em plena atividade.
É difícil apreender em poucos parágrafos um personagem tão multifacetado e repleto de contradições. Mesmo porque se trata de três Clints distintos: o ator, o diretor e a figura pública. Essas três dimensões às vezes se confundem, outras vezes se entrechocam. Talvez seja o caso de observá-las uma a uma, deixando para o fim a que mais nos interessa: a de cineasta.
Um rosto impassível
Sobre o Clint Eastwood ator, podemos tomar como ponto de partida a observação jocosa de Sergio Leone, que o dirigiu na célebre “trilogia dos dólares” em meados da década de 1960: “Ele tinha duas expressões – com chapéu e sem chapéu”. Esse rosto pétreo e impassível, que expressa autoconfiança e desdém, seria uma marca registrada do ator ao longo de toda a sua carreira, até hoje.
Os épicos e operísticos spaghetti westerns de Leone (Por um punhado de dólares, Por uns dólares a mais e Três homens em conflito) criaram uma das personae cinematográficas do ator: a do cavaleiro solitário e misterioso que chega a um vilarejo, faz o que tem que fazer (matar uma porção de gente, em resumo) e vai embora sem dar explicação nem satisfação. Esse personagem reaparece, sob nomes diversos, e muitas vezes sem nome, em faroestes realizados pelo próprio Eastwood e por outros diretores. No YouTube é possível encontrar de graça, com legendas em inglês, o monumental Três homens em conflito, com suas quase três horas de duração.
A outra imagem indelével do ator nas telas é a do policial durão Harry Callahan, o “Dirty” Harry, surgida pela primeira vez em Perseguidor implacável (1971), de Don Siegel, que teria diversas continuações, dirigidas por outros cineastas não tão bons.
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Esses dois arquétipos – um, rural e histórico; o outro, urbano e contemporâneo – moldariam para sempre a figura de Clint Eastwood no imaginário norte-americano e, por extensão, mundial. Em ambos os casos, trata-se de um indivíduo que age à margem da lei e das regras do convívio social para cumprir o que julga ser seu papel, ou para impor o que julga ser a coisa certa. É a personificação do individualismo norte-americano, com tudo o que ele implica simbolicamente: livre iniciativa, coragem, espírito desbravador, autonomia do indivíduo contra o estado, mas também o recurso às armas e a imposição pela força.
Independência radical
Essa noção radical de liberdade individual Clint Eastwood sustenta também na sua vida pessoal e na sua relação com a política. Sedutor notório, manteve com as mulheres até hoje uma atitude de predador: casado oficialmente duas vezes, teve pelo menos oito filhos com seis mulheres diferentes, alguns deles só conhecidos e reconhecidos décadas depois de nascer. A atriz Sondra Locke, com quem ele viveu durante catorze anos, acusou-o em suas memórias de tê-la praticamente forçado a fazer dois abortos e a ligar as trompas, além de sabotar sua carreira como diretora.
Na política, embora tenha se aproximado desde cedo do Partido Republicano, declara-se “independente demais para ser de direita ou de esquerda”. Eleito como candidato independente, sem partido, foi prefeito da cidade californiana de Carmel, numa gestão nada memorável, segundo os cidadãos locais, e quase sempre votou nos republicanos: duas vezes em Eisenhower, duas vezes em Nixon, duas vezes em Reagan. Mas é crítico de Donald Trump.
Sua posição com relação às armas é ambígua. Declarou certa vez: “Sou a favor do controle do porte de armas, para que elas não caiam na mão dos criminosos e desequilibrados”. Em outra ocasião disse: “Sou pelo controle das armas. Se houver uma arma por perto, quero que esteja sob o meu controle”. Cultua o exército (disse que virou republicano por causa do “herói de guerra” Eisenhower), mas se declara pacifista, e se opôs à guerra do Iraque.
Por trás da imagem de macho durão e arrogante, existe uma fina sensibilidade musical. Pianista competente, Eastwood é um grande entusiasta do jazz e do blues, paixão que transparece em seu filme Bird (1988), sobre Charlie Parker, e no episódio que dirigiu para a série documental The blues, produzida por Martin Scorsese em 2003.
Cineasta maior
Todas essas facetas e contradições são importantes para compreender sua obra como cineasta, mas não a explicam. E é aí que Clint Eastwood se torna mais interessante. Solidamente ancorada na linhagem clássica de Hawks, Ford e Huston, toda a sua filmografia como diretor pode ser vista como uma progressiva problematização dos temas que aparecem de maneira esquemática, estilizada ou simplificada nos velhos faroestes e policiais em que atuou.
Há, por um lado, uma espécie de reflexão in progress sobre a figura do herói americano, seja ele caubói (Os imperdoáveis), soldado (A conquista da honra, Sniper americano), policial (Um mundo perfeito, J. Edgar) ou artista (Bird, Coração de caçador).
Seus filmes foram se tornando cada vez mais sombrios, ambivalentes, cheios de nuances. A morte violenta, que em seus primeiros filmes como ator era fácil, espetacular, quase eufórica, torna-se um evento doloroso, triste e difícil em seus filmes como diretor.
O principal ponto de inflexão nesse processo talvez seja Os imperdoáveis (1992), sua obra-prima e um dos maiores faroestes de todos os tempos. Ali, ele revisita o tema clássico do pistoleiro aposentado que volta à ativa para realizar uma última missão, um último acerto de contas. Mas o velho Will Munny encarnado por ele se desincumbe da tarefa – vingar uma prostituta desfigurada por homens brutos – quase como um fardo, uma sina indesejada. Um rapaz que se alia a ele, deslumbrado com a ideia de participar da ação, treme e chora na hora de apertar o gatilho. “Nunca pensei que matar uma pessoa fosse tão difícil”, diz, ou algo parecido.
O próprio Munny, ao se defrontar com o xerife corrupto e cúmplice dos bandidos (Gene Hackman), declara: “Eu matei mulheres e crianças. Matei praticamente tudo que anda e rasteja. E estou aqui para matar você”. Isso é dito num tom enlutado, de tragédia inevitável. Numa das últimas imagens, depois da carnificina, tremula ao fundo uma bandeira dos Estados Unidos. Um país que nasce sob o signo das armas e da violência.
Embora afirmasse que fazia filmes “para entreter, não para formar opiniões”, Eastwood diz que convenceu Gene Hackman a entrar no projeto mostrando que havia ali uma declaração moral e política.
Anjo da morte
A morte é problematizada também em outros grandes filmes da última fase do cineasta. Em Sobre meninos e lobos, a cena mais dolorosa é aquela em que um personagem, movido por um equívoco, “tem que” matar um amigo de infância. Em Menina de ouro, o personagem encarnado pelo ator atende ao apelo de sua pupila, que praticamente vegeta num leito de hospital, para abreviar seu sofrimento. A cena é filmada nas sombras, na contraluz, como a chegada do anjo da morte.
Mesmo no mal compreendido Sniper americano, o assassinato asséptico e à distância de supostos inimigos no Iraque deixa sequelas insuperáveis em quem aperta o gatilho.
Outros temas explosivos de nossa época, como o racismo, a imigração e o papel ambivalente da mídia, são abordados de forma complexa e nuançada em produções como Crime verdadeiro e Gran Torino. Esses e outros filmes de Clint Eastwood comprovam a ideia de que um grande artista é capaz de produzir obras que transcendem suas eventuais fraquezas e limitações pessoais.
Assim como o “reacionário” Nelson Rodrigues criou um teatro e uma literatura que esmiúçam de modo insuperável as nossas mazelas morais, o machão republicano Clint Eastwood forjou um cinema que expõe a pulsação, as contradições e a fragilidade do homem americano contemporâneo.