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‘Contra a interpretação’

29 de julho de 2021

Tomo emprestado o título de um livro célebre de Susan Sontag para falar de David Lynch, cujo Cidade dos sonhos (2001) chega ao streaming na plataforma gratuita do Sesc digital. Pois, como todos os melhores filmes do diretor, esse também elude (e ilude) qualquer leitura que se pretenda explicativa ou, pior ainda, definitiva.

Temos ali uma aparente trama central: Betty (Naomi Watts), vinda de Ontario, chega a Los Angeles com o sonho de se tornar atriz de Hollywood. Por uma sucessão de acasos e mal-entendidos, ela acolhe e faz amizade com uma desconhecida (Laura Harring) que acaba de sofrer um acidente e perder a memória, assumindo provisoriamente o nome Rita.

O fio da memória

O principal eixo narrativo será a busca das duas novas amigas pelo fio da memória de Rita: quem é ela? O que aconteceu? Por que ela carrega muitos milhares de dólares na bolsa? A chave que acompanha a dinheirama abre o quê?

Esse enredo, em si intrincado, pleno de mistérios e fundos falsos, é entremeado de sequências aparentemente desvinculadas, avulsas, quase curtas-metragens inseridos no corpo do longa. Neles, Lynch exercita sua maestria sobre gêneros variados.

O terror, por exemplo, na cena em que um homem vai à lanchonete que viu num pesadelo para tirar a limpo aquilo que o assombrou. Aqui, o suspense é construído de modo sutil e preciso, com base apenas no ritmo, na ligeira instabilidade da câmera subjetiva, na música hipnótica de Angelo Badalamenti. Podia ser uma aula de técnicas expressivas num curso de cinema.

Duas outras sequências são comédias de humor negro e violência que poderiam ter saído de um filme de Tarantino ou dos irmãos Coen. Uma delas está tenuemente ligada ao contexto narrativo central (o mundo das aspirantes a estrelas hollywoodianas): um diretor (Justin Theroux) caído em desgraça por rejeitar uma atriz patrocinada por mafiosos volta mais cedo para casa e encontra a mulher na cama com um brutamontes, dando início a uma troca de agressões absurdas. Essa sequência tem uma continuação ainda mais hilária um pouco adiante.

O outro episódio de humor negro mostra um homem matando um suposto amigo para se apoderar de uma misteriosa agenda negra. O assassino segue cuidados precisos: arma com silenciador, lenço para apagar as digitais, simulação de suicídio, etc. Mas um pequeno deslize desencadeia uma sucessão de mal-entendidos e uma espiral de violência estúpida. O que isso tem a ver com a história central, a das duas amigas?

Uma resposta possível é que o episódio está ali justamente para suscitar essa pergunta, para incitar o espectador a pensar, buscar conexões, construir uma lógica. Mas essa construção nunca se completa, a conexão não se estabelece. Tudo permanece em aberto, pulsante de possibilidades.

A lógica dos sonhos

Ao contrário dos cineastas que apresentam um enigma para depois resolvê-lo de modo compreensível e tranquilizador para o público, Lynch deixa inúmeros pontos sem nó. Tudo fica no ar, trazendo uma sensação de instabilidade e vertigem, ou no mínimo de desconforto.

Assim como A estrada perdida (1997), Cidade dos sonhos se divide em duas partes que se espelham mutuamente, mas como que por meio de um espelho deformante, em que cada uma das partes se distorce na outra, se estranha, se contradiz.

Entre as duas partes de Cidade dos sonhos, ou no trânsito de uma para a outra, percebem-se operações semelhantes às verificadas nos sonhos: inversões, deslocamentos, mudanças de identidade, condensações. Aquilo que tinha um determinado sinal numa parte adquire sinal invertido na outra. Personagens secundários se tornam centrais, trocam-se papéis, o que era familiar vira assustador e vice-versa.

Só que é impossível definir qual seria a parte da “história verdadeira” e qual a do sonho deformador. Pois cada uma delas, em si mesma, parece obedecer a uma lógica onírica, desenvolver-se como se desenvolvem os sonhos.

Dito assim, pode-se ter a impressão de que o filme é um amontoado aleatório de sequências sem pé nem cabeça. Nada mais falso. Há uma precisão absoluta na construção de atmosferas e na criação do que poderíamos chamar de esboços de histórias. O espectador é provocado a imaginar as continuações, os desfechos e eventualmente as explicações – mas o filme não as oferece. Limita-se a fornecer uma infinidade de pistas, elementos, citações, informações visuais e auditivas que não se fecham, não se apaziguam.

Qualquer psicanalista decente dirá que não existem interpretações fixas, já dadas, para elementos do sonho, do tipo “sonhar com trem significa morte” ou “sonhar que está caindo indica masturbação”. O sentido de cada coisa será dado pela experiência pessoal e pela história mental e afetiva do indivíduo que sonha, pelo lugar em que tal ou qual coisa ocupa no seu universo psíquico-emocional.

Podemos pensar numa situação análoga em relação aos filmes de David Lynch: seus sentidos serão tantos quantos forem seus diferentes efeitos sobre diferentes espectadores. Cada um deles construirá seu próprio filme, por assim dizer, ou o desdobrará em uma ou outra direção. Isso, claro, se estiver disposto a abrir-se à experiência.

Ilusionismo e rigor

Uma passagem antológica do filme é a do Clube Silêncio, onde Rebekah Del Rio canta “Llorando”, não só pela força poética da sequência e sua insólita beleza, mas por dar as pistas de que tudo, naquele palco e no cinema, é artifício, ficção, ilusionismo. E no entanto acreditamos e nos emocionamos. Para surtir seu efeito, a mágica precisa ser realizada com destreza e precisão.

E aqui se chega a um ponto crucial. Mesmo sem ser “compreendidos”, os filmes e séries de David Lynch são amplamente admirados, contando com um público cativo e crescente. Como é que, nesse processo constante de sugerir intrigas e sonegar sua resolução, ele não perde os espectadores no meio do caminho, aborrecidos pela aparente arbitrariedade ou falta de sentido?

A resposta, a meu ver, está na sua extrema competência como roteirista e, principalmente, como diretor. Por mais absurda e delirante que possa ser a situação encenada, ele a encena com um controle absoluto dos meios específicos de sua arte: enquadramento, ritmo, iluminação, montagem, direção de atores. A uma imaginação sem limites corresponde um extraordinário rigor de técnica e expressão. “Libérrima e exata”, escreveu Manuel Bandeira sobre Cecilia Meireles. O mesmo se poderia dizer de David Lynch, esse diabólico e exigente construtor de pesadelos.