Uma das obras mais contundentes da 48ª Mostra de Cinema de São Paulo, o brasileiro Malu, de Pedro Freire, narra as relações de amor e ódio entre uma atriz de meia-idade, sua mãe e sua filha. Vencedor do prêmio de melhor longa-metragem (dividido com Baby, de Marcelo Caetano) no recente Festival do Rio, o filme entra em cartaz em várias cidades brasileiras na próxima quinta, 31/10.
A atriz em questão é Malu Rocha (Yara de Novaes), personagem inspirada na mãe do diretor. Ela já teve seu auge no teatro e hoje (isto é, nos anos 1990, quando se passa a ação) vive retirada numa casa modesta em uma pequena favela à beira-mar, nos arredores do Rio de Janeiro. Sonha em transformar o lugar num centro cultural para a comunidade. O filme começa quando sua filha Joana (Carol Duarte), também atriz, volta da França, onde passou uma temporada estudando e atuando.
Malu divide a casa com a mãe, Lili (Juliana Carneiro da Cunha), que tenta atraí-la para a igreja católica e afastá-la das drogas. Num puxadinho improvisado mora o jovem negro Tibira (Átila Bee), ator e dançarino, por quem Lili nutre uma franca hostilidade.
Ambiente em obras
É nesse ambiente inacabado, perpetuamente em obras, paralisado entre a memória do passado, o projeto futuro e a realidade presente, que essas poucas criaturas vão alternadamente trocar afeto e se digladiar, com momentos de crueldade psicológica que lembram o cinema de Fassbinder.
Entre as reminiscências libertárias de Malu, que não se conforma com a caretização do teatro e do mundo em geral, e as dificuldades concretas do dia a dia, desenrola-se um drama pleno de violência emocional, pontuado por um humor feroz.
O diretor Pedro Freire se serve habilmente do espaço confinado e precário da ação para extrair o máximo das potencialidades dramáticas do embate entre as atrizes – todas elas excepcionais. Carol Duarte, no papel de Joana, expressa diante das excentricidades da mãe e da avó uma perplexidade e uma angústia que são também, suponho, a da maioria dos espectadores.
Por esse jogo dramático entre mulheres de três gerações passa muito da história do teatro brasileiro (e também do cinema) nas últimas décadas, oscilando entre a utopia de novas relações humanas e a conformação às regras do mercado e da mídia. Um filme belo e perturbador, para dizer o mínimo.
Outros destaques
Na reta final da 48ªMostra, vários títulos valem o esforço de brigar por um ingresso. Aqui vão alguns deles:
Dahomey (Senegal/Benin/França), de Mati Diop. Magnífico documentário ganhador do Urso de Ouro em Berlim, faz da devolução de 26 relíquias do reino do Daomé (entre as mais de 7.000 saqueadas pela França nos últimos séculos) o ponto de partida para uma discussão acalorada sobre o colonialismo e o eurocentrismo. A diretora, parisiense, é filha de um músico senegalês e uma fotógrafa francesa.
Levados pelas marés (China), de Jia Zhangke. História de amor e desamor que atravessa as primeiras décadas do século 21, entre uma aspirante a cantora, modelo e atriz e um pequeno empresário associado a falcatruas. Reciclando engenhosamente materiais de filmes que realizou desde 2000, o cineasta mostra as transformações sofridas pela China no período.
Permanência em lugar nenhum (Taiwan), de Tsai Ming-liang. Um monge vestido de manto vermelho atravessa num passo lentíssimo (que simula câmera-lenta) paisagens naturais e ruas de Washington. Acompanhando em planos fixos, sem diálogos e praticamente sem música, o ritmo do andarilho, que contrasta com a azáfama do mundo em torno, o cineasta malaio induz o espectador a um estado de contemplação e a uma percepção diversa da realidade cotidiana.
A queda do céu (Brasil), de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha. Inspirado no livro homônimo de Davi Kopenawa e Bruce Albert, o documentário se vale de belíssimas imagens da floresta, do cotidiano indígena e dos rituais xamânicos para conectar o mito yanomami da queda do céu com a luta atual contra o garimpo e o desmatamento. Prêmio de melhor direção de documentário no Festival do Rio.
No céu da pátria nesse instante (Brasil), de Sandra Kogut. A turbulenta campanha eleitoral de 2022, culminando na invasão das sedes dos três poderes em 8 de janeiro de 2023, é vista “por dentro” através de núcleos díspares: um grupo de bolsonaristas do Paraná, uma equipe de agentes da justiça eleitoral, o comitê do candidato ao governo do Rio Marcelo Freixo, etc. Para corações fortes, já que essa guerra ainda não acabou.
Centro ilusão (Brasil), de Pedro Diógenes. Músicos populares de duas gerações se conhecem casualmente num concurso de fomento em Fortaleza. Enquanto esperam pelo resultado, perambulam pela cidade e passam em revista suas memórias e seus sonhos. Drama sensível sobre artistas à margem, ganhou o prêmio principal da mostra Novos Rumos, do Festival do Rio. Do mesmo diretor de A filha do palhaço.
Os maus patriotas (Reino Unido), de Victor Fraga. O brasileiro radicado na Inglaterra entrevista o cineasta veterano Ken Loach e o ex-líder trabalhista Jeremy Corbyn, ambos hostilizados pela mídia conservadora britânica como antipatriotas e simpatizantes de terroristas. Na conversa, ilustrada por trechos de filmes de Loach e matérias jornalísticas, eles passam em revista a resistência do establishment político e cultural britânico às ideias socialistas e de justiça social.
Enterre seus mortos (Brasil), de Marco Dutra. Curiosa e incômoda mistura de terror, faroeste e ficção científica estrelada por Selton Mello e Marjorie Estiano e ambientada num futuro distópico em que crianças são confinadas em ilhas e animais mortos são triturados para virar adubo. Inspirado no livro homônimo de Ana Paula Maia.