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Coutinho no CECIP

09 de setembro de 2023

A mostra Coutinho 90 está em cartaz no IMS Paulista.

“Só se pode subverter o real, no cinema ou alhures, se se aceita, antes, todo o existente, pelo simples fato de existir.”

 

Essas são as palavras de Coutinho, finalizando um texto escrito para o catálogo do festival Cinéma du Réel em 1992.

Eu só li essa frase muito tempo depois. Ela representa o que foi Coutinho no CECIP, o Centro de Criação de Imagem Popular. A decisão de trabalhar numa organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que se propõe a atuar em comunicação e educação, na defesa e na ampliação de direitos de cidadania, é uma decisão arriscada, quixotesca, no limite do impossível, se não houver, para sustentá-la, uma fundação, um endowment, um lastro financeiro que garanta sua sobrevivência. O impossível se materializou no grupo que criou o CECIP. Tínhamos apenas a vontade, o desejo de realizar algo que contribuísse para a construção de um ideal democrático, depois de 21 anos de ditadura civil-militar. O que tínhamos a oferecer como garantia eram apenas nossas histórias de vida, as experiências que vivemos naqueles anos, a confluência dos vários percursos abertos, num caminhar em que esperança e utopia se alimentavam mutuamente. Tínhamos Paulo Freire, Washington Novaes, Ana Maria Machado, Marialva Monteiro, Ennio Candotti e Eduardo Coutinho, para nomear alguns nomes mais conhecidos. O Projeto Vídeo Popular era um sonho gestado durante muito tempo, que, após um momento inicial no Iser, tomou forma definitiva no CECIP, num processo do qual Coutinho participou intensamente. A TV Maxambomba, que produzia e projetava vídeos nas praças da Baixada Fluminense, é parte de experiências que aconteceram naqueles anos, mas sua inspiração, sua referência, era o Cabra marcado para morrer.

O que é “defender e ampliar direitos de cidadania”? Mesmo não tendo clareza sobre essa questão e muito menos uma resposta quanto aos caminhos para chegar lá, a presença de Coutinho nos livrou de sermos, como instituição, um instrumento de agit-prop (agitação e propaganda). No debate de um seminário realizado em 1997 na PUC-SP, sobre ética e história oral, Coutinho revelou o que está presente em tudo o que ele fez no CECIP, suas ideias, seu método de trabalho:

“Eu não faço roteiros escritos, inclusive, porque acho que, se eu fizer um roteiro escrito, não preciso filmar, já está feito o filme. Tento fazer filmes em que tenho perguntas a colocar e vou tentar saber quais são as respostas fazendo o filme. Geralmente o filme, quando dá certo, não termina com uma resposta-síntese. Então, eu não faço cinema para militantes, graças a Deus, e meus filmes terminam, suponho eu, com perguntas e reflexões, e não com uma resposta.”

Os projetos que lhe foram apresentados tiveram dele uma respeitosa e intensa atenção. Coutinho tinha uma capacidade de concentração absoluta no tema proposto, até penetrar profundamente nele e, de certa maneira, incorporá-lo, em suas ambiguidades e incertezas. Só então se considerava em condições de ouvir, de escutar o outro, qualquer que fosse sua identidade, gênero ou característica pela qual comumente classificamos as pessoas que encontramos.

A valorização do que Coutinho realizou em vídeo, desde a consagração de seu Cabra marcado para morrer, em 1984, até sua volta às salas de cinema, em 1999, com Santo forte e Babilônia 2000, (também coproduzidos pelo CECIP), foi feita nesse terreno que alguns consideram como uma espécie de série B do campeonato A cinematográfico. Volta Redonda, memorial da greve, Santa Marta, duas semanas no morro, Boca de lixo e Mulheres no front fazem parte dessa fase, da qual constam também O jogo da dívida – Quem deve a quem?; A lei e a vida, entre outras produções. São “filmes” que não foram para as telas do cinema, mas fizeram outros percursos: circuitos universitários, associações comunitárias, sindicatos, comunidades de base. São produções que foram apresentadas em festivais nacionais e internacionais e que receberam quase uma centena de prêmios importantes. Foram consagrados, sobretudo, por audiências que fazem parte de movimentos cuja influência no dia a dia de comunidades não é percebida por pesquisas ou estatísticas, até que, por algum fato, aflorem à superfície, em protestos de todo tipo, como se fossem um fenômeno inesperado da natureza a desafiar o status quo.

A produção de Coutinho desvela essa fase cecipiana, onde ele teve toda a liberdade de aperfeiçoar a sua técnica da escuta, essa capacidade extraordinária que possuía, um dom genuíno e original.

O CECIP era o refúgio de Coutinho, uma base estável, protegida, onde ele podia ler, escrever com dois dedos na sua Olivetti 22, receber quem ele desejasse ou aquiescesse conversar e preencher cinzeiros com cigarros consumidos pela metade. Nas equipes formadas pelas produções que ele realizou no CECIP, passaram profissionais de primeira linha e jovens iniciantes que já o tinham como modelo. Sérgio Goldenberg, assistente em Santa Marta, Theresa Jessouroum, em Volta Redonda. Pablo Pessanha, Jacques Cheuiche, Jordana Berg, Cristiana Grumbach, Tim Rescala, um time de colaboradores que talvez não acontecesse em outro ambiente. Mas, além dessa turma, toda a equipe do CECIP foi influenciada pela presença cotidiana de Coutinho, por suas opiniões, pelas conversas, pelo seu senso de humor.

Cada uma das produções que constam dessa série tem histórias que precisariam de mais espaço para serem contadas. Mas o resultado que Coutinho obteve em cada uma delas mostra sua disposição em dar voz aos que não a têm e, com isso, revelar a realidade que não se deve naturalizar. Sindicalistas, favelados, catadores de lixo e mulheres que mudam a vida de suas comunidades são indícios de mudanças, do “inédito viável” que Paulo Freire propunha.

O que foi possível preservar da trajetória de Coutinho está hoje sob os cuidados do Instituto Moreira Salles. Além de filmes e documentários em vídeo, há anotações em inúmeros cadernos e recortes. Num pequeno texto de Claude Lanzman sobre os títulos que pensou para seu documentário Shoah, Coutinho sublinhou o que poderia ser o resumo de sua obra: “o lugar e a fala”.