O texto abaixo é uma colagem feita por Paulo Sacramento de trechos de sete artigos escritos pelo cineasta e crítico Jairo Ferreira no jornal São Paulo Shimbun entre os anos de 1967 e 1972: Os blefes de Mojica (1967), Mojica, cineasta antropofágico (1968), “Antropofagia” (1969), O lixão vai vomitar (1970), Fim do pesadelo (1971), A invasão dos sapos (1972) e Mojica, cafajeste mágico (1972).
Seus escritos acerca da obra de José Mojica Marins e do personagem Zé do Caixão foram cortados e rearranjados segundo o método de cut-up (ou, mais especificamente, fold in), como utilizado pelo autor beat William Burroughs. O próprio Jairo Ferreira utilizou esse método em seu romance (ainda inédito) Sushi da Súcia.
Essa não dá pra aguentar. Tudo se admite, menos a morte do Zé do Caixão. O Antonio das Mortes sim, podia morrer, ia ter pouca gente no enterro dele. Matou cangaceiro paca, mas fez muita demagogia, tem que #%$*#$. O Zé não, não pode morrer. Se o pesadelo acordado deixa de existir, a casa cai no vácuo. O negócio é descobrir quem é que anda tentando matar o Zé do Caixão. E acabar com o assassino antes que morra o personagem.
Vamos ver: com nada menos que dez cortes, a censura federal liberou O estranho mundo de Zé do Caixão. A fita de José Mojica Marins está mutilada. Fazemos questão de assinalar em negrito os cortes efetuados. No primeiro episódio, Bonecas, foi cortada a cena em que aparece um homem acariciando os seios de uma mulher (isto não é novidade para nenhum leitor, milhões de filmes já mostraram pior). Outra em que Mojica inseriu flagrantes de uma orgia (cf. O segundo rosto). Na segunda história, Tara, os soldados meteram a bota, digo, a tesoura, na cena do casamento em que a noiva é esfaqueada por uma mulher vingativa e rola pela escadaria da igreja. Os militares cortaram (e a parte cortada fica com quem?) também a cena em que um tarado beija o cadáver da mulher (Belle de jour mostra pior: o homem se masturba com um cadáver, e não teve corte). No último episódio, Ideologia, os ilustres mutilaram a cena da tortura de um homem, outra em que ele beija o corpo de uma dona, a de um prisioneiro que atira ácido na cara de uma mulher, outra em que Oãxiac Odéz sangra o prisioneiro, e outra onde ele devora os restos mortais de um casal solenemente servido à mesa. Foram só esses, Mojica?
As imposições do governo atual estão já inculcadas na mentalidade popular: a massa não tem reações, permanece entorpecida. Os filmes de Mojica são uma agressão, embora não tenham o menor sentido revolucionário. É uma revolta fictícia, trágica e irracional, obtendo um resultado subliminar, pois se não há transformação social surge a transformação existencial…
O diretor assegura que seu próximo filme – Encarnação do demônio – será muito mais forte. E espera que a censura use o bom senso. Nós preferimos acreditar que a fita será queimada juntamente com Mojica, pois parece que estamos involuindo para a Idade Média, voltando a ser macacos. E os próprios filmes de Mojica antecipam essa volta à Inquisição. Vejam todos que – sendo apolítico – este cineasta filma um estado de coisas bárbaro e selvagem como nos dias de hoje só o renascente IV Reich poderia imaginar. Acontece que a fita será fragmentada, e isso prejudica uma visão total, que mesmo imaginando não será muito lisonjeira a Marins.
Centenas de pessoas gostaram dos filmes, mas não conseguem explicar nada. Perderam a lucidez (que nunca tiveram), perderam a capacidade de agressividade e, no fundo, subconscientemente, pensaram que Zé do Caixão é um líder como Jânio Quadros… Mas um e outro discordam: deve-se instruir a plateia a não aceitar o seu cinema nacional predileto; a opinião de alguns críticos representa as conveniências dos mesmos. Trata-se de saber manobrar: elogiar a calamidade pode ser tática: combater as fitas de Mojica pode ser frustração. A guerra ainda não começou e os adversários escolhem suas armas: Mojica é uma dessas armas de dois gumes. Começa a ser uma situação, um fato sociológico.
Em Ritual dos sádicos¹ (inédito), o próprio Mojica fala de seu personagem, encerrando o ciclo num metacinema extraordinário. Um filme magistral. Aqui estamos diante de um filme novo, novíssimo, pois é um filme extremamente brasileiro. A ambientação: os programas de TV em que Zé aparecia, as revistas de terror que aos poucos desapareceram das bancas, a música carnavalesca Castelo dos horrores. Filme de uma dignidade incrível.
Mojica Marins está 50 anos à frente do Buñuel e surge como primitivo-surrealista porque filma a realidade brasileira pelo avesso, pelo subjetivo. O terror artificial de certo cinema estrangeiro vira realidade. O parnasianismo da Rapaziada do Brás, melodia de som lírico em caixinha de música, vira cinema dantesco nas mãos de Mojica.
Era preciso muita coragem para filmar tudo isso: Mojica assumiu essa estrutura, como pioneiro, semivanguarda no cinema de linguagem chanchadística que foi e ainda é o cinema brasileiro. Criticá-lo por usar música de Edgar Varèse, ele que não tem grana para contratar Duprat ou Os Mutantes? Por ser picareta? Não: se existe o Chacrinha, então tudo é permitido… É proibido proibir, diz Caetano.
Em São Paulo está surgindo um movimento cinematográfico: a substituição pura e simples da certeza pela incerteza, do estável pelo instável, uma total recusa ao fixo e ao correto. O mau comportamento, enfim. Uma fase desorientada, porém criticíssima. Um cinema espúrio por excelência, paupérrimo por condição. Mas suficiente para alvoroçar uma cidade. Parabéns a Mojica e ao subdesenvolvimento!
Todas as noites acordo com o ruído das unhas do Zé contra o caixão. Acorrentaram o esquife do homem. Está sobrevivendo da força do seu próprio sangue. Raça nova. E quem o pichou de nazista é quem o era. Imbecis nunca entendem o que vem dois ou três anos antes de sua época mesquinha. Relâmpagos! Relâmpagos! O Zé está gemendo: será que conseguiu arrebentar as correntes? As unhas do Zé estavam sangrando entre o caixão e a tampa. E ele prometia vingança, prometia assar a cabeça de seus algozes e servir num banquete com uma batata na boca e uma cenoura em cada olho.
A antropofagia no cinema brasileiro nasceu com À meia-noite levarei sua alma, Esta noite encarnarei no teu cadáver, O estranho mundo de Zé do Caixão (último episódio) e agora o extraordinário Bacanal dos sádicos, que está em fase de conclusão. Mas em Marins tudo é inconsciente.
Mojica é um sádico? Um hedonista? Um doido? Um primitivo? Um comunista? Um intuitivo? Um masoquista? Um desrecalcado? Ou será um lunático disfarçado em terráqueo?
José Mojica Marins é o cineasta mais bárbaro, criativo e deflagrador do cinema nacional. Mojica, o visionário da Mooca, o criador do Zé do Caixão, sem dúvida o melhor personagem de toda a história do cinema nacional, não sabe se abandona o cinema pelo circo ou se enlouquece indo ao cartório de protesto todo dia.
Vá ter talento em outra parte, seo Zé. Você tem demais o que os outros tem de menos, quando tem… Daí que realmente é o cineasta dos excessos, da riqueza cafajeste, da riqueza selvagem. Nada mais linear, mas nada mais quente, nada mais provocante: é a antropofagia num nível de escrotidão jamais visto na tela. Tá na cara que Mojica é o diretor mais corajoso do cinema brasileiro: é a coragem de se olhar no espelho e reconhecer um grandíssimo (&&&)…
Repudiar Mojica é fácil, o difícil é degluti-lo. Devorem o Mojica! Os que com seriedade conseguirem fazê-lo sentirão o fantástico sabor do homem brasileiro gangrenado, tipo classe-média-para-baixo – vítima antecipada da pseudo-revolução industrial que estamos vivendo.
Talvez Mojica seja mesmo importante: a decisão cabe ao cinema nacional, ao processo revolucionário… Mojica não tem a menor pretensão de englobar-se naquela história-que-marcha-pra-frente, contentando-se com o sucesso imediato e o nome em letras maiúsculas nesta enciclopédia de besteiras que é o cinema de massa entre nós. Ele mobiliza a plateia, abre alas, faz figura. Isto é o que falta a muita gente de qualidade. Enquanto o Brasil está dormindo, que venham mil Mojicas!
¹ Em 1986, após 17 anos de censura, o filme originalmente intitulado Ritual dos sádicos (anteriormente Bacanal dos sádicos) foi renomeado como O despertar da besta, título com que tem circulado desde então.