Componente incontornável da cultura contemporânea, o cinema tornou-se uma das principais ferramentas discursivas, políticas e de representação da cultura dos povos indígenas nas últimas décadas. No Brasil, projetos como o Vídeo Kayapó, o Vídeo nas Aldeias e o Instituto Catitu (entre outros) são referência e oferecem oficinas de operação de câmera, edição e som para comunidades indígenas. Os primeiros filmes - com participação coletiva entre indígenas e não-indígenas - foram realizados em meados da década de 1980 e fomentaram um processo de provocação e integração que culminou com a criação das Oficinas de Formação em 1997. desde meados da década de 1980. Criadas para “promover o encontro dos povos indígenas com a sua própria imagem”[1], essas oficinas revolucionaram a natureza das imagens e da (auto)representação das culturas indígenas. Com a dinâmica da própria imagem em si, processos cada vez mais intensos, criativos e subjetivos foram desenvolvidos por uma geração de cineastas indígenas espalhados por todo o território nacional.
Atualmente, cerca de 90% das comunidades indígenas brasileiras possuem seu próprio cineasta.[2] Esses artistas transformaram suas comunidades em poderosos centros de produção de imagens, e ocuparam uma posição importante no intercâmbio da produção simbólica, fortalecendo significativamente uma cadeia produtiva com diversas possibilidades de formação e atuação.
Rompendo os limites do cinema etnográfico e dos estudos acadêmicos sobre o uso da câmera e da imagem na pesquisa antropológica, as produções indígenas subverteram noções visuais comumente aceitas acerca do que é ser indígena, e criaram um efeito de paralaxe, introduzindo novos temas, histórias e personagens no cinema brasileiro contemporâneo.
Dividida em seis eixos temáticos, a mostra Demarcação das telas e revolução das imagens: celebrando 35 anos de produção audiovisual indígena é a mais ampla retrospectiva já realizada no Instituto Moreira Salles, apresentando diferentes recortes da produção de cineastas indígenas do Brasil.
Inicialmente concentrada nas mãos de cineastas homens, a produção audiovisual realizada por cineastas mulheres vem se consolidando nos últimos anos graças a um movimento que trabalha principalmente na desconstrução de imaginários equivocados perpetuados pela sociedade e pelos meios de comunicação usuais. Filmes como Ooni (2021), O que me leva não é mercadoria de bolso (2022), Teko Haxy - ser imperfeita (2018) e Yãmĩyhex: as mulheres-espírito (2019) vêm ocupando cada vez mais espaços, representando um cinema autoral, rico e diverso.
A última década consolidou também uma forte expressão audiovisual de cineastas que “combatem com a câmera na mão”, nas palavras de Ailton Krenak. Filmes como Zahy - Fábula do Maracanã (2012), Ava Yvy Vera - A terra do povo do raio (2017), Os espíritos só entendem nosso idioma (2019), Zawxiperkwer Ka’a - Guardiões da Floresta (2019) e ATL - Acampamento Terra Livre (2017) reforçam a importância do audiovisual como ferramenta essencial para a luta política, a proteção do território e a reivindicação de direitos fundamentais.
A relação das comunidades indígenas com o meio ambiente é uma temática intrínseca desde suas primeiras produções audiovisuais. Kaapora - o chamado das matas (2020), Yarang Mamin (2019), Sonho de fogo (2020), Amne adji papere mba - Carta Kisêdjê para o Rio+20 (2012) configuram poderosos manifestos políticos, poéticos, culturais e cosmológicos que alertam para a cegueira do mundo ocidental acerca dos riscos e das ameaças de destruição da natureza e do mundo.
Por outro lado, a forma técnica da linguagem dos filmes de animação configura uma produção recente, embora a sabedoria e o conhecimento utilizados nessas narrativas estejam sempre presentes nas formas de contação de histórias dessas culturas. As apropriações dessas linguagens técnicas resultaram em obras impactantes. Mãtãnãg: a encantada (2019), A festa dos encantados (2016), Konãgxeka: o dilúvio Maxakali (2016), Ga vī: a voz do barro (2021) e Amazônia sem garimpo (2022) são exemplos do acionamento dessas culturas visuais indígenas pelo campo da animação, ampliando sua vivacidade e atualidade, e dialogando com um público ainda mais abrangente.
Um dos apontamentos mais importantes dessa mostra é o reconhecimento de alguns títulos como “clássicos” do cinema indígena brasileiro. Realizados nas décadas de 1990 e 2000, filmes como Wapté Mnhõnõ - A iniciação do jovem Xavante (1999), Marangmotxíngmo Mïrang: das crianças Ikpeng para o mundo (2001), Shomõtsi (2001), Ma Ê Dami Xina: já me transformei em imagem (2008) e Bicicletas de Nhanderú (2011) romperam barreiras em um momento em que os experimentos indígenas com a produção de imagens ainda causavam desconfiança e inquietação entre antropólogos, cineastas e artistas.
Na outra ponta, um recorte de produções audiovisuais contemporâneas apresenta obras com experimentações radicais na linguagem. Filmes como Tamuia (2021), O verbo se fez carne (2019), Kanau’kyba (2021), Jayankiri (2021), Lithipokoroda (2020) e Karaiw a’e wà (2022) são uma espécie de “contracinema” que utiliza as ferramentas do audiovisual para (re)organizar discursos e elementos simbólicos em outros conjuntos de significados, gerando novos alcances e efeitos.
A quantidade e a qualidade de filmes realizados por cineastas indígenas no Brasil possibilitam diferentes leituras curatoriais. Optamos por priorizar a diversidade temática, territorial, de deslocamentos e pertencimentos das obras selecionadas. Se a literatura e as artes visuais indígenas consolidaram nomes singulares de qualidade indiscutível, foi o trabalho com o audiovisual que melhor se integrou à paisagem social das comunidades indígenas no Brasil, uma vez que se trata das formas de ouvir e enxergar (áudio/visual) o que está no princípio de suas culturas.
O domínio da linguagem cinematográfica configura um significativo avanço político, discursivo e semiótico para as comunidades indígenas no Brasil. As produções audiovisuais realizadas por cineastas indígenas e seus colaboradores são, atualmente, um dos mais importantes movimentos cinematográficos da América Latina, constituindo parte essencial de um conjunto de estéticas contracoloniais/decoloniais, responsáveis por deslocar as chamadas estéticas “imperiais”.
[1] Vincent Carelli, Vídeo nas Aldeias (1989)
[2] Ver “IMS Convida para Conversar: debate com Graciela Guarani, Michele Kaiowá, Kamikia Kisêdjê, Vincent Carelli e Takumã Kuikuro” (03.08.2021).