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O sentido do caos

21 de junho de 2019

Spoiler: o Brasil morre no fim. Estou falando de Democracia em vertigem, o documentário de Petra Costa que está em cartaz na Netflix. O filme é uma leitura pessoal dos vertiginosos acontecimentos políticos dos últimos anos, inseridos num contexto histórico mais amplo, que remonta à construção de Brasília ou mesmo a épocas mais remotas: à constituição da “república das famílias” que controlam “a mídia, a pedra, o cimento, o aço, o gado, a justiça e as finanças”. 

 

 

O adjetivo “pessoal” foi usado acima no sentido literal: a diretora não apenas narra seu filme em primeira pessoa como entrelaça a história do país com a da sua família. Neta de um dos fundadores da grande empreiteira Andrade Gutierrez, ela é filha de dois militantes de esquerda que foram presos pela ditadura militar e viveram anos na clandestinidade.

 

Precipitação da história

Ao explicitar logo de início seu singular “lugar de fala”, Petra fica à vontade para manusear com extrema desenvoltura o material bruto que tem em mãos: registros documentais dos eventos históricos que envolveram o impeachment de Dilma e a prisão de Lula, filmes domésticos, cinejornais, entrevistas realizadas pela própria diretora no Congresso, no Planalto, na Alvorada e nas ruas, tudo isso amarrado pela locução serena, com emoção contida, da própria diretora.

A textura heterogênea desses distintos materiais contribui para a expressar no plano sensorial a ideia de vertigem, de precipitação turbulenta da história, sem no entanto mergulhar no caos. Pois há sentido nesse pandemônio; há nessa loucura, se não um método, ao menos uma lógica – a da reafirmação, sob aparências eventualmente diversas, da “república das famílias”. Pelo menos essa é a interpretação exposta de forma franca, sem falsa “objetividade” e muito menos “neutralidade”, pela realizadora. Quem quiser que apresente outra.

Não é, entenda-se, uma visão partidária. Embora exponha claramente as razões que a levam a ler como golpe a destituição de Dilma e como perseguição política a prisão de Lula, Petra não se furta a expor também as fissuras dentro da esquerda e sua decepção pessoal com os descaminhos do PT. Aqui, o depoimento autocrítico de Gilberto Carvalho – que foi conselheiro de Lula e ministro de Dilma – parece ser o que mais condiz com o pensamento da diretora. Curiosamente, o mesmo Gilberto Carvalho aparece como voz lúcida e dissonante também em outro documentário recente, O processo, de Maria Augusta Ramos, centrado no impeachment.

Ao lado de O processo (2018), de Excelentíssimos (Douglas Duarte, 2018) e de Entre os homens de bem (Caio Cavechini e Carlos Juliano Bastos, 2016), Democracia em vertigem pode ser visto como mais um passo importante no esforço cinematográfico coletivo para entender como chegamos ao atual estágio de esgarçamento do tecido social e de deterioração da democracia.

 

Visão íntima

Um grande trunfo do filme de Petra Costa, além da liberdade propiciada pelo uso da narração em primeira pessoa, vem do acesso exclusivo que ela teve a determinados locais e situações, redundando numa extrema proximidade com atores centrais do drama.

“Entramos”, por exemplo, no automóvel que transportava Dilma Rousseff no dia em que a Câmara votou a favor de seu impeachment. No palácio da Alvorada, “escutamos indiscretamente” uma conversa de Lula ao celular comunicando a alguém que seria nomeado ministro pela então presidente. Uma visão íntima assim dos grandes personagens políticos remete, entre outros poucos exemplos, a Entreatos, de João Moreira Salles, que acompanhou os bastidores da campanha vitoriosa de Lula em 2002.

Imagens inéditas do interior do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo nos tensos momentos que antecederam a prisão do ex-presidente, com a multidão rugindo do lado de fora, são de um valor histórico e de uma dramaticidade impressionantes. Boa parte desse material, ao que parece, vem do fotógrafo e cinegrafista oficial de Lula, Ricardo Stuckert.

Mas igualmente eloquentes são os depoimentos de anônimos colhidos diretamente pela diretora. Com grande tino jornalístico, por exemplo, ela entrevista uma faxineira que limpa uma escada do Palácio da Alvorada recém desocupado por Dilma. A moça primeiro repete um lugar-comum do tipo “Aqui se faz, aqui se paga”, mas depois se contradiz e acaba dando a entender que talvez tenha sido injusto o destino da ex-chefe. É um retrato comovente de alguém que está geograficamente no coração do poder, mas que não o compreende, não interage com ele, não participa – a não ser como serviçal invisível – da “república das famílias”. É um momento elegíaco em meio ao turbilhão de acontecimentos que nos lançaram na situação tenebrosa em que estamos hoje.

Depois de um crescendo de tensão, as últimas imagens, filmadas do alto, mostram a Esplanada dos Ministérios em Brasília, com pessoas se dispersando ao fim de uma manifestação. A impressão é de gente à deriva, sem rumo, como formigas cuja casa acabou de ser destruída por um pontapé. E quando estamos prestes a cortar os pulsos, começam os letreiros ao som de Baden Powell tocando lindamente seu “Canto de Ossanha”. Deixamos a gilete de lado, o fim pode esperar mais um pouco, afinal talvez a notícia da morte do Brasil tenha sido um tanto prematura.

 

Deslembro

Sobrou pouco espaço para comentar uma pequena obra-prima em cartaz nos cinemas, Deslembro, de Flávia Castro, sobre o qual falei brevemente quando foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado. 

 

 

Acrescento apenas que aqui também se trata de uma história pessoal entrelaçada à dos acontecimentos políticos do país – no caso, de uma família que volta do exílio quando é decretada a anistia, em 1979, no ocaso da ditadura militar.

Como a narrativa é centrada numa adolescente que cresceu na França e redescobre o Brasil ao mesmo tempo em que busca entender o que aconteceu com o pai desaparecido, temos uma confluência ímpar de romance de formação, de ajuste de contas histórico e de estudo sobre os afetos mais íntimos. Poucos filmes são capazes de equilibrar de modo tão feliz a delicadeza e a contundência.

 

Rubens Ewald

A morte de Rubens Ewald Filho (1945-2019), no último dia 19, comoveu não apenas a comunidade cinematográfica, especialmente quem conviveu com sua figura doce e generosa, mas uma enorme legião de amantes do cinema, do cinéfilo mais aplicado ao espectador “comum”. Todos nos beneficiamos de um jeito ou de outro de seu conhecimento enciclopédico, de sua entrega apaixonada ao ofício e de sua facilidade de comunicação. Registro aqui minha dívida e minha tristeza.