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Dentro de nossas portas (1920), de Oscar Micheaux: o renascimento da nação

19 de novembro de 2024

A sessão Dentro de nossas portas está em cartaz no cinema do IMS Paulista em novembro.

 

No texto “Filmes de Micheaux: celebrando a negritude” (2019), bell hooks contrapõe a demanda recorrente feita aos cinemas negros de representar obrigatoriamente imagens positivas das pessoas pretas à criatividade opositora que impulsiona os filmes de Oscar Micheaux. A autora ressalta que, para o diretor estadunidense pioneiro, se tratava mais do desejo de contar “histórias originais da vida negra”[1], com suas complexidades de experiências e de sentimentos, do que de simplificar a presença negra em tela apenas pela oposição negativa e positiva. Junto com hooks, celebramos a variedade das experiências e vivências negras que saltam aos olhos quando assistimos ao cinema de Micheaux. Dentro de nossas portas (1920), feito há mais de um século, pode ser visto como um dos marcos iniciais desse projeto cinematográfico. O filme é a segunda obra dirigida pelo diretor e, como o primeiro, The Homesteader, é considerado perdido, seria o longa-metragem ficcional mais antigo dirigido por uma pessoa negra nos EUA com cópia ainda existente.

Falar de Oscar Micheaux é falar também do cinema em uma dimensão múltipla, não apenas de criação estética e formal, mas da invenção de um mercado de imagens próprio em uma sociedade marcada pela segregação – como era os EUA no início do século 20. Micheaux foi um dos empreendedores pioneiros do cinema dirigido, encenado, produzido e distribuído por pessoas negras – sendo parte da consolidação do que viria a ser chamado de Race Movies (entre os anos 1910 e 1950). Essa consolidação ficou mais no desejo do que na realidade, visto que foi um mercado caracterizado pela instabilidade e pelas dificuldades de financiamento e de distribuição dos filmes. Ainda assim, durante o curto auge dos filmes raciais (com pico em 1921, e diminuição considerável a partir dos anos 1930), “produtoras e exibidores negros trabalhavam juntos com o intuito de organizar algo semelhante ao sistema de integração vertical das empresas majors de Hollywood, no qual produtores tinham garantia automática de exibição nos cinemas do estúdio produtor”.[2]

Infelizmente, esse mercado logo passaria por uma desestruturação financeira, com a concorrência vinda de produtoras brancas que buscavam atrair o lucrativo público negro. E, ainda que a maioria dos filmes tenha se perdido em processos de deterioração pelas constantes exibições e/ou pelas condições inadequadas de armazenamento, os race movies inauguraram o primeiro movimento cinematográfico que visava à autorrepresentação negra como fim – contra os estereótipos e racismos dos filmes hollywoodianos do período.

Foi nesse contexto que, entre 1919 e 1948, Oscar Micheaux dirigiu mais de 40 filmes sobre e para pessoas negras. O seu modo de produção era econômico e intenso: ele chegava a filmar três ou quatro filmes por ano, em alguns períodos. Para isso, eram utilizados atores não experientes (junto com outros profissionais) e locações reaproveitadas de outros filmes, e muitas vezes um único take era realizado para cada plano (o erro não poderia acontecer e, quando ocorria, deveria ser incorporado ao filme). O próprio diretor vendia ações dos filmes para comerciantes negros com o objetivo de conseguir produzi-los e circulava com as cópias prontas, que eram exibidas em diferentes cinemas por anos (para assegurar algum retorno financeiro da empreitada).

Screen Snapshots (trechos)

Foi nesse contexto que, entre 1919 e 1948, Oscar Micheaux dirigiu mais de 40 filmes sobre e para pessoas negras. O seu modo de produção era econômico e intenso: ele chegava a filmar três ou quatro filmes por ano, em alguns períodos. Para isso, eram utilizados atores não experientes (junto com outros profissionais) e locações reaproveitadas de outros filmes, e muitas vezes um único take era realizado para cada plano (o erro não poderia acontecer e, quando ocorria, deveria ser incorporado ao filme). O próprio diretor vendia ações dos filmes para comerciantes negros com o objetivo de conseguir produzi-los e circulava com as cópias prontas, que eram exibidas em diferentes cinemas por anos (para assegurar algum retorno financeiro da empreitada).

Para além desse lado empreendedor, Michaux se dedicou a cultivar a sua criatividade opositora, propondo histórias negras variadas e, sobretudo, com personagens dos mais diversos tipos. Em Dentro de nossas portas, acompanhamos a saga de Sylvia (interpretada por Evelyn Preer, atriz presente em vários dos filmes de Micheaux). Na história, ela é uma professora negra dedicada e idealista em busca do amor e de transformações concretas para a população negra dos EUA, por meio do acesso à educação. Sylvia é marcada por um trauma familiar do passado e enfrenta uma série de obstáculos e contratempos no seu presente: a inveja e sabotagem dos primos nortistas; a violência do primeiro noivo (que a ataca ao achar que foi traído); pretendentes amorosos pelos quais ela não se interessa; tentativas de assaltos e acidentes diversos – para falarmos de alguns. Nada disso abala a sua crença na possibilidade de transformação a partir do trabalho e da dedicação.

Em sua jornada atribulada, a ligação entre o sul dos EUA (de onde ela é originalmente) e o norte (onde ela tenta recomeçar a sua vida) não é uma via de mão única. A heroína desloca-se com frequência de uma região para a outra, como se em nenhuma das duas fosse capaz de isoladamente proporcionar uma possibilidade de vida negra plena (sem o trauma do passado e a atuação permanente da antinegritude). Como argumenta Jacqueline Stewart, no filme, “Micheaux pinta o retrato de um país profundamente fragmentado – regional e racialmente –, sem qualquer possibilidade de reparação política ou estética”.[3] (2013, p. 185). Não à toa, a possibilidade de um final feliz não vem com facilidade e precisa passar pelo casamento da personagem sulista com o médico de Boston, Dr. Vivian (que simboliza o homem negro instruído do norte do país, com valores patrióticos e consciência de raça).

Com essa união norte-sul, é como se, cinco anos depois, Micheaux respondesse ao desfecho de O nascimento de uma nação (D.W. Griffith, 1915) e o recriasse. A união agora não é mais entre norte e sul brancos (os Stoneman e os Cameron), mas “entre as elites instruídas negras do norte e do sul para estudar e trabalhar em busca de uma ascensão”[4]. Nesse sentido, o filme ajuda a fundar uma das marcas dos race movies: as narrativas de elevação (uplift) negra.

Nessas narrativas de elevação, a classe média alta e bem instruída aparece como um ideal a ser atingido em muitos dos filmes. Se há uma miríade de personagens negros nos filmes, os mocinhos e mocinhas representam o negro “bem-educado, rico e de boa reputação”. O mais importante, como ressalta Gaines, era “desafiar as suposições brancas de que os negros não poderiam, em hipótese alguma, ser isso ou aquilo”[5]. Assim, há nos filmes uma tensão que se instala entre os avanços individuais (morais e financeiros) de uma classe média negra em ascensão e a condição negra coletiva que permanece inalterada. Até porque o conceito de elevação nesses filmes estabelecia uma equivalência entre engrandecimento social e moral: “Avanços morais significavam avanços sociais, como se um fosse decorrência do outro”[6]. Assim, em Dentro de nossas portas, a união entre Sylvia e Dr. Vivian é construída também como a possibilidade de superação do trauma da professora (que viu sua família adotiva ser linchada e que quase foi violentada no sul). Assim, esse processo de cura não passa pela vingança ou por um senso de justiça aos perseguidores brancos, mas pela adoção de uma postura patriótica e digna para a construção de um novo futuro.

Além da permanente contraposição sul versus norte, o filme apresenta também outras dicotomias que atravessam a possibilidade de construção de uma nova “cidadania negra”[7]. Uma das questões mais marcantes é a contraposição da educação como instrumento de transformação social e de conquista de autonomia negra, por um lado, e a religião como elemento alienante e de manutenção da opressão, por outro.

No lado da educação, temos o reverendo Wilson Jacobs e sua irmã Constance, professores negros do sul, que tocam com muita dificuldade a escola Piney Woods, para crianças negras desprovidas – escola onde, após suas primeiras desventuras no norte, Sylvia passa a trabalhar. Os dois irmãos, Sylvia e Dr. Vivian se alinham em uma perspectiva de que a formação educacional e o investimento na construção de cidadãos negros com valores morais cristãos (trabalho, família e pátria) seriam capazes de transformar a realidade da população negra dos EUA para melhor.

Já a religião, em uma perspectiva cínica, é usada para a manutenção da subserviência por sacerdotes como Ned. O pastor prega contra as ambições de ascensão negra – o caminho para o céu estaria na manutenção de uma “alma simples” e não questionadora. Se Micheaux faz questão de mostrar os financiadores brancos de Ned, ele também não alivia para o papel de antagonistas e traidores de vários dos personagens negros do filme. Junto com Ned, no polo dos personagens moralmente condenados pela narrativa, estão os primos nortistas de Sylvia (que tramam de forma desonesta contra a heroína) e o criado sulista Efrem (fofoqueiro e traidor).

Ainda assim, é o arrependimento tardio de sua prima Alma que possibilita a reconciliação entre Sylvia e Dr. Vivian, ressaltando os tons de cinza que perpassam a formação de caráter desses personagens complexos, mesmo com os moralmente condenáveis. Ou, como diz Stewart: “O filme possui um grande elenco de tipos negros, mostrando que a população negra é composta de indivíduos de origens extremamente diversas e com objetivos e estilos de vida muito distintos”[8]. Suas desventuras e eventuais bons encontros nos fazem questionar qual o significado da identidade negra estadunidense. E a resposta é que existem inúmeras possibilidade de significado para essa identidade nos filmes, tanto quanto existem inúmeros personagens e vivências negras.

É nessa ampla possibilidade de respostas que se forja na junção do debate da reivindicação de uma humanidade negra e do patriotismo negro estadunidense que o filme lança o seu horizonte. Um horizonte que segue sendo perseguido quase 105 anos depois.

 


 

[1] hooks, bell. Filmes de Micheaux: celebrando a negritude. In: . Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.

[2] Gaines, Jane. “Uma breve história dos race movies”. In: Almeida, Paulo Ricardo G. de (org.). Oscar Micheaux: o cinema negro e a segregação racial. Rio de Janeiro: Voa!, 2013, p. 11.

[3] Stewart, Jacqueline. “Uma jornada tortuosa rumo à cidadania: Dentro de nossas portas”. In: Ibidem, p. 185

[4] Ibidem, p. 189.

[5] Gaines, Jane. Op. cit., p. 115.

[6] Ibidem, p. 116.

[7] Stewart, Jacqueline. Op, cit.

[8] Ibidem, p. 182.