Doutor Gama, de Jeferson De, é um marco histórico. Pela primeira vez um cineasta negro brasileiro realiza um longa-metragem sobre um importante personagem negro da história nacional, no caso o advogado e escritor abolicionista Luiz Gama (1830-1882). Pena que o filme tenha chegado aos cinemas justo agora, quando boa parte do público ainda se sente insegura para passar um par de horas com desconhecidos numa sala fechada. Mas os especialistas garantem que, respeitados os devidos protocolos, o risco de contágio é muito pequeno.
Luiz Gama é uma figura e tanto. Nascido livre na Bahia, filho de uma africana alforriada e de um branco, foi vendido aos dez anos pelo próprio pai a um mercador de escravos. Passou parte da infância e a adolescência em São Paulo como escravo doméstico de um comerciante (também de escravos, ao que parece), aprendeu a ler aos 17 anos, conquistou sua liberdade, estudou direito e passou a defender com grande eloquência as causas de negros escravizados, chegando a libertar centenas deles.
Diante do desafio de levar às telas essa trajetória, com as complicações decorrentes dos temas envolvidos e da reconstituição de época, o inquieto Jeferson De, que já havia experimentado diversos gêneros, do drama social de periferia à comédia, passando pelo terror juvenil, resolveu adotar uma abordagem estética mais segura, garantida, convencional.
Drama de tribunal
Deixando de lado alguns aspectos importantes da vida do biografado (sua atividade como “escravo de ganho”, seu alistamento no exército, sua carreira literária), o cineasta se concentrou em dois eixos, ou antes, dois blocos narrativos: o drama familiar de Luiz Gama, desde a separação da mãe até o casamento com Claudina (Samira Carvalho Bento/Mariana Nunes), e sua atuação num caso específico, o de um escravo, José (Sidney Santiago), que matou seu próprio senhor a facadas. Desse modo, Jeferson De pôde manipular com segurança os códigos consagrados do melodrama e do filme de tribunal.
O pano de fundo, obviamente, é o Brasil escravagista de meados do século 19, quando boa parte do trabalho escravo era ilegal, uma vez que oficialmente o tráfico negreiro havia sido abolido por imposição da Inglaterra, e portanto todos os negros trazidos da África depois de 1850 deveriam ser considerados cidadãos livres em território nacional. Foi nesse terreno incerto, entre a letra da lei e a suja realidade, que Luiz Gama exerceu seu ofício e expressou seu discurso libertário.
A estrutura narrativa convencional a que me referi não impede que Doutor Gama tenha uma abertura ousada e sagaz. Durante um julgamento (o mesmo que veremos no final), o advogado Luiz Gama (o ótimo César Mello) denuncia violências praticadas contra um réu negro e questiona qual seria a atitude dos presentes (o júri? a plateia do tribunal?) naquela situação. Fala diretamente para a câmera e parece estar interpelando o público de hoje, sentado na poltrona do cinema ou da sala de casa.
Dessa abertura, corta para a infância de Luiz Gama em Salvador, a separação da mãe revolucionária (Isabél Zuaa), etc. Nos primeiros 40 minutos de filme acompanharemos o percurso biográfico do protagonista até chegar ao julgamento paradigmático do escravo que matou o senhor. É como se toda a narrativa servisse para dar carnadura e sentido ao discurso que ouvimos no começo e que naquela altura, a seco, pode ter soado abstrato e meramente militante. As palavras retornam, são praticamente as mesmas, mas agora estão vivas, nelas correm sangue, suor e lágrimas. Grande acerto do roteiro (de Luiz Antonio) e da direção.
Não cabe entrar aqui em detalhes da história de Gama, seu casamento com Claudina, sua amizade com o advogado branco Antonio (Johnny Massaro/Higor Campagnaro), seu embate com o promotor Pedro (Erom Cordeiro). Mas pelo menos três questões merecem uma atenção especial.
Entre a lei e a justiça
Uma delas é a relação movediça entre lei e justiça, abordada no veemente discurso de Luiz Gama no tribunal e ilustrada indiretamente por vários episódios narrados até então. A certa altura, o advogado abolicionista chega a dizer: “São as próprias leis que estão sendo julgadas aqui”. Muito antes disso, numa mesa de taverna com três homens brancos, o jovem Gama indicara que a dona do local, uma mulher negra, dava guarida a escravos fugidos. Infringia a lei, mas estaria errada, do ponto de vista moral? Qual seria a conduta justa?
Ligada a essa questão, há a igualmente complexa relação entre a via legal e a via armada de enfrentamento da escravidão e do racismo. Em mais de um momento Luiz Gama se vê confrontado com esse dilema, e a posição do filme parece ser a de que são ações complementares e não necessariamente excludentes.
Por fim, há a interação de Luiz Gama com os brancos, e o modo como estes são mostrados no filme. Se o amigo Antonio, cultor de ideias progressistas e iluministas, é retratado como uma figura com um certo grau de contradição, de hesitação entre o impulso de ruptura e o compromisso com seu meio social, outros brancos são personagens unidimensionais, monstros racistas em tempo integral.
É o caso, por exemplo, de Thereza (Clara Choveaux), viúva do senhor morto pelo escravo; de Cardoso (Nelson Baskerville), o comerciante em cuja casa o jovem Luiz Gama trabalhou; e do promotor Pedro. Todos eles veem o negro como um ser intrinsecamente inferior: para Cardoso ele é um utensílio doméstico; para Pedro, um monstro; para Thereza, menos que um bicho da fazenda.
É certo que houve – e ainda há – quem pense assim, mas essa tipificação quase caricatural corre o risco de se esgotar na catarse e, o que é pior, indiretamente “desculpar” o racismo mais sutil de cada dia, entranhado nos indivíduos sem que eles próprios percebam. Diante de uma protonazista como Thereza, o racista moderado que há em tantos de nós se sente escusado, dizendo: “Ainda bem que não sou desse jeito”.
Nada disso empana o brilho do filme, que tem boas soluções dramáticas e visuais (como no relato de José sobre como e por que matou seu senhor, em que os flashbacks são introduzidos em elegantes travelling laterais, mantendo a fluência narrativa) e uma reconstituição de época vívida e convincente, graças sobretudo à excelente direção de arte (de Thales Junqueira), que escapa do modelo engomadinho das novelas e séries históricas de TV. A caracterização de São Paulo como um local ainda marcadamente rural me pareceu bastante feliz. A propósito: a maior parte das filmagens foi feita em Paraty.
Doutor Gama, em suma, é uma obra animadora e, em grande medida, desbravadora. Não é a primeira personalidade histórica negra retratada no nosso cinema, mas em geral essas histórias foram contadas por cineastas brancos (Ganga Zumba e Xica da Silva por Cacá Diegues, Chico Rei por Walter Lima Jr., Cruz e Sousa por Sylvio Back, etc.). Por melhores que fossem as intenções desses diretores, não era a mesma coisa. Que venham outros filmes, outros personagens, outros olhares, outros diretores e diretoras negros, ensejando uma releitura crítica coletiva da nossa formação como uma das sociedades mais racistas e desiguais do mundo.
Festival de Gramado
Pelo segundo ano seguido, o Festival de Cinema de Gramado, que começa nesta sexta-feira, 13 de agosto, terá uma edição híbrida, isto é, exibida pela televisão (Canal Brasil) e serviços de streaming (Canais Globo e Globoplay). Entre os longas brasileiros em competição que tive oportunidade de assistir, o que me pareceu mais forte foi o drama social/político/existencial Homem onça, de Vinicius Reis, ambientado no Brasil dos anos 1990. Falaremos sobre ele aqui em duas semanas, quando entrar em cartaz nos cinemas.
Outros concorrentes nacionais que merecem ser vistos:
Jesus Kid, de Aly Muritiba, sátira corrosiva sobre um escritor de westerns de sucesso (Paulo Miklos) que se vê envolvido com um produtor de cinema picareta que lhe encomenda o roteiro de um filme, e ao mesmo tempo é acossado por um militar truculento que quer obrigá-lo a escrever a biografia do presidente da república.
Carro rei, de Renata Pinheiro, fantasia tecnológica em que um garoto nascido no interior de um táxi tem a faculdade de se comunicar com os automóveis. Por sua vez, seu tio (Matheus Nachtergaele), uma espécie de inventor maluco, desenvolve carros que falam com seus donos e têm vida própria.
A primeira morte de Joana, de Cristiana Oliveira, “romance de formação” de uma garota (Letícia Kacperski) de uma cidade do interior gaúcho que, aos 13 anos, resolve investigar o passado da tia-avó que acaba de morrer, uma mulher independente que nunca teve um namorado. No processo, Joana acaba descobrindo sua própria sexualidade com uma amiga discriminada pelo moralismo local.
Mas o festival traz também longas-metragens latino-americanos e curtas brasileiros, além de uma competição específica para filmes gaúchos. Vale a pena acompanhar a programação.
Paulo José
Sobre o imenso Paulo José, que morreu nesta quarta-feira, 11 de agosto, não há mais o que dizer. Só agradecer por tudo o que nos deu. E ver e rever seus filmes, novelas, séries. Sim, seus. Porque um ator como Paulo José é sempre um pouco (ou muito) autor das obras em que atua.