Ainda nem terminou o festival de Gramado (vai até sábado, 26/9) e já está começando outro evento cinematográfico fundamental, o festival de documentários É Tudo Verdade, que nesta sua 25ª edição exibirá os filmes em sessões online.
É uma ótima oportunidade não só para conhecer boa parte do que se produziu de melhor na última safra nacional e estrangeira, mas para constatar a incessante expansão dos limites do gênero, em termos de linguagem, técnica e abrangência temática.
Do massacre de indígenas da Amazônia à vida dentro de um supermercado, da biografia de personalidades como Jair Rodrigues e Milos Forman ao incêndio de uma casa noturna em Bucareste, tudo é matéria de prospecção cinematográfica. Num mundo inundado de imagens e sons que mais atordoam do que orientam, os bons documentários ajudam a organizar e decifrar o caos através do filtro da inteligência e da sensibilidade de seus realizadores. Como o antigo escritor latino Terêncio, o documentarista pode dizer de boca cheia: “Nada do que é humano me é estranho”.
Alguns destaques da programação que não podem passar em branco:
A cordilheira dos sonhos (França/Chile), de Patricio Guzmán. O festival não podia ser aberto com filme mais esplêndido. No último título da trilogia que dedicou a seu país – os outros foram Nostalgia da luz, sobre o deserto, e O botão de pérola, sobre o mar – Guzmán aborda os Andes com aquela sua linguagem única, que funde o biográfico, o histórico e o poético, conectando o bairro e o cosmo, o minuto e o milênio.
A dolorosa relação entre o cineasta e seu país, que ele deixou logo depois do golpe de Pinochet, em 1973, para viver no exílio, impregna as imagens deslumbrantes da montanha e dos vales, os depoimentos de artistas e escritores, e sobretudo os impressionantes registros documentais da época da ditadura, captados pelo cineasta “sobrevivente” Pablo Salas. Toda a tragédia e a riqueza do Chile condensados numa elegia arrebatadora.
Segredos do Putumayo (Brasil), de Aurélio Michiles. A incrível trajetória de Roger Casement, irlandês que, como observador enviado pela coroa britânica, testemunhou as barbaridades belgas no Congo a escravização e o massacre de indígenas pela empresa da borracha Peruvian Amazon Company, perto da tríplice fronteira Peru-Brasil-Colômbia no início do século 20.
Com registros de época e imagens filmadas hoje na região, o manauara Michiles constrói uma narrativa dilacerante e paradoxalmente poética, tendo como eixo o relato de Casement. O observador irlandês foi sagrado cavaleiro pelo rei George por sua contribuição aos direitos humanos. Mas, quando se juntou à resistência armada dos irlandeses contra a dominação britânica, Casement foi preso na Torre de Londres e enforcado como traidor.
Colectiv (Romênia/Luxemburgo), de Alexander Nanau. Em 2015, a casa noturna Colectiv, em Bucareste (Romênia), pegou fogo durante um show de rock, num caso muito parecido com o da boate Kiss, no Rio Grande do Sul. Morreram no local 27 jovens, queimados ou pisoteados. Outros 37 morreram em hospitais romenos, em sua maioria por infecção hospitalar.
O documentário acompanha a investigação jornalística que se seguiu e que desvendou um esquema gigantesco de corrupção no sistema de saúde, o que levou à queda do governo e à nomeação de um novo ministro da saúde. Se a primeira parte da narrativa tem como protagonista o editor de um jornal esportivo que foi o primeiro a descobrir o escândalo, a segunda mostra o novo ministro, um médico jovem e idealista, em luta contra o sistema corrupto. Um filme preciso e eletrizante como um thriller policial.
Meu querido supermercado (Brasil), de Tali Yankelevich. Meticulosa, sensível e surpreendente revelação do mundo, ou melhor, dos mundos que existem dentro de um grande supermercado de uma metrópole brasileira. A atenção da diretora se volta para a rotina dos inúmeros labores, do caixa ao padeiro, do pintor de cartazes ao repositor de mercadorias, da faxineira à chefe do controle de vigilância, mas sobretudo para o universo pessoal de cada um desses funcionários, com suas visões de mundo, seus problemas íntimos, seus projetos e suas dores. Cinema de conhecimento e descoberta.
Forman vs. Forman (República Tcheca/França), de Helena Trestikova e Jakub Hejna. Cinebiografia documental do diretor tcheco-americano Milos Forman (1932-2018), montada a partir de entrevistas e depoimentos do próprio em várias épocas, além de cenas de filmagens e bastidores. Os pais mortos em campos de concentração, o curso de cinema, os primeiros filmes driblando a censura do regime comunista, a Primavera de Praga esmagada pelos tanques soviéticos, o exílio nos EUA, o sucesso com Um estranho no ninho e a consagração com Amadeus, os fracassos, a relação complicada com seu país, tudo isso é narrado com inteligência e ironia pelo próprio Forman, que confessa a certa altura se identificar com Salieri (o contemporâneo invejoso de Mozart), por “sentir inveja de Bergman, Fellini, Antonioni”.
Atravessa a vida (Brasil), de João Jardim. O documentário acompanhou durante três meses um grupo de alunos de terceira série de um colégio público de Simão Dias, no interior de Sergipe, que se preparavam para o exame do Enem. As conversas, dúvidas, projetos e angústias desses garotos e garotas no fim da adolescência são mostrados com respeito e delicadeza e acabam revelando riquezas interiores insuspeitadas. Pelas bordas, entram problemas mais amplos da formação social e cultural brasileira, os descompassos entre gerações, as transformações das relações familiares, etc. De quebra, comprova-se a importância do ensino público inclusivo e de qualidade, tão ameaçado nestes tempos troglodíticos.