Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

A arte do encontro

17 de junho de 2021

Como todo dia é dia de alguma coisa, 19 de junho, sábado, é o dia do cinema brasileiro, essa criatura hoje tão maltratada. Para comemorar a data, o Sesc Digital resolveu colocar no ar por um mês, gratuitamente, três filmes do nosso maior documentarista, Eduardo Coutinho: Santo forte (1999), Peões (2004) e Jogo de cena (2007). Completa a programação o ótimo documentário Eduardo Coutinho, 7 de outubro (2013), de Carlos Nader, em que o diretor comenta momentos de sua filmografia e explicita suas concepções.

A escolha dos filmes foi bastante feliz, pois ilumina o percurso das inquietações éticas e estéticas do diretor na última e mais fértil fase da sua obra. O marco inaugural dessa etapa tardia, iniciada quando Coutinho estava com 66 anos, é justamente Santo forte, extraordinária incursão, ou antes imersão, no imaginário religioso popular. O filme consiste unicamente de conversas com moradores da favela carioca Vila Parque da Cidade, divididos entre o catolicismo, as igrejas evangélicas, a umbanda e o espiritismo kardecista, frequentemente mesclando várias dessas religiões.

 

Ouvir o outro

Quando mostrou Santo forte aos amigos mais próximos, alguns deles disseram que ninguém iria querer ver aquela sucessão de cabeças falantes. Mal sabiam que ali estava o cerne de um método cinematográfico que daria notoriedade internacional ao diretor e que se baseia numa atitude aparentemente muito simples: ouvir o outro, fazer com que ele ou ela se revele e se reinvente diante da câmera.

“A fala humana, o corpo que fala”, resume Coutinho no documentário de Carlos Nader. Existe coisa mais essencial e empolgante? Pouco importa se o que a pessoa diz é verdade ou mentira. O que importa é essa autoimagem construída no encontro com o realizador. A câmera não está lá para captar uma realidade dada, mas sim para suscitar o encontro, que é o verdadeiro objetivo.

Santo forte, a despeito de seu assunto de grande impacto – a presença do sagrado no cotidiano de um punhado de indivíduos –, pode ser visto ainda como um esboço, ou a primeira sondagem de um território novo. O próprio Coutinho, anos depois, lamentaria ter recorrido no documentário a algumas muletas do cinema convencional, como por exemplo o plano “ilustrativo” em que aparece uma imagem da pomba-gira, sobre a qual estava falando um personagem (o termo que ele preferia para seus entrevistados).

Falei em método alguns parágrafos acima. Talvez o mais correto fosse dizer “métodos”, no plural, pois a cada um de seus filmes seguintes Coutinho criaria um, embora todos partissem dessa mesma base: ouvir o outro. Em cada um deles o diretor estabelecia suas regras e suas interdições – sua “prisão”, como ele mesmo dizia. Em Babilônia 2000, por exemplo, tratava-se de ouvir moradores do morro Babilônia, na zona sul do Rio, na véspera do ano novo, sobre seus projetos e perspectivas para o novo milênio. Em Edifício Master, entrava-se num punhado de apartamentos de um prédio de Copacabana para conversar com seus moradores.

 

Eduardo Coutinho no set de Moscou, 2008. (Foto de Bianca Aun)

 

A diferença como trunfo

Nesse contexto, Peões ocupa um lugar singular. Seu projeto (sua “prisão”) é reencontrar operários do ABC paulista que participaram do movimento sindical liderado por Lula no final dos anos 1970 e início dos 80. Diferentemente do que ocorre nos outros filmes dessa última fase, o documentário utiliza material de arquivo daqueles anos, ainda que de forma discreta e original.

Alguns dos personagens encontrados se aposentaram, outros continuam na ativa, outros fazem bicos para sobreviver. A partir dessas histórias pessoais, Peões acaba traçando indiretamente um quadro das transformações sofridas pelo movimento operário brasileiro – e pela própria estrutura da indústria – nas últimas décadas. E o filme se conclui com um dos momentos mais sublimes da obra de Coutinho, aquele em que, depois de explicar por que não quer que seu filho seja peão de fábrica, o operário olha para o cineasta e pergunta: “Você já foi peão?”

No documentário de Carlos Nader, Coutinho desdobra essa pergunta em outras: você já foi mulher? Já foi negro? Já foi índio? Ele será sempre o não peão, o não negro, o não mulher, o não índio. Por isso o outro, ou outra, será sempre único e terá algo de inacessível, irredutível. Mas o cinema pode suscitar e registrar o encontro, a fricção, entre esses diferentes, e a faísca de vida resultante. “Fazer da diferença um trunfo”, dizia ele.

A ideia dos entrevistados como personagens que se autoconstroem diante da câmera, num misto de sinceridade e fingimento, é elevada a um novo patamar em Jogo de cena, no qual se embaralham os depoimentos de mulheres “comuns” e de atrizes conhecidas (Marilia Pêra, Andrea Beltrão, Fernanda Torres) que relatam em primeira pessoa as mesmas histórias de vida.

As balizas limitadoras aqui são duas: todas as personagens são mulheres e todos os depoimentos são dados num palco de teatro vazio. O resultado é desconcertante, sobretudo porque há uma atriz desconhecida (ou pouco conhecida) que repete uma das histórias narradas, de tal maneira que ficamos sem saber qual das duas é a mulher que viveu aquilo e qual a atriz que simulou ter vivido. Em algum momento, todo mundo “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.

O documentário Eduardo Coutinho, 7 de outubro é o complemento perfeito para essa visão ou revisão da obra de Coutinho como um vívido e inquieto work in progress. Ali, além de momentos marcantes de outros filmes (Edifício Master, O fim e o princípio, As canções) comentados pelo próprio cineasta, somos brindados com suas reflexões sobre a vida (“um absurdo sem remissão”), sobre as entrevistas como “relações eróticas no sentido mais amplo”, sobre sua recusa ao que é perfeito e acabado (“Gosto de tudo que é inacabado, impuro, imperfeito, precário”) e sobre o ato de filmar, que ele definia como “um meio de estar vivo”.

É isto: Eduardo Coutinho (1933-2014) continua vivo nas centenas de encontros que ele construiu e filmou.