A entressafra entre os “filmes do Oscar” e os novos títulos que as distribuidoras hesitam em lançar é um bom momento para vasculhar os canais de streaming (Netflix, Mubi, Belas Artes à la Carte, Cinesesc, SPcine Play, etc.) para descobrir ou rever clássicos que ajudam a entender – ou pelo menos suportar – a nossa época. Dificilmente algum deles será mais atual e eletrizante que Eles vivem (1988), de John Carpenter, em cartaz na Netflix.
Realizado dez anos antes de Matrix, o filme de Carpenter aborda de maneira mais adulta, áspera e consistente a ideia de uma manipulação coletiva das consciências e percepções. Seu protagonista é Nada (Roddy Piper), um brutamontes que chega a Los Angeles atrás de trabalho e arranja um emprego temporário na construção civil. Levado por um novo colega, Frank (Keith David), ele vai viver num misto de favela e acampamento de sem-teto. É lá que começa a desconfiar que algo muito estranho está acontecendo.
Os sinais vêm de duas fontes: os sermões apocalípticos de um pregador cego (Raymond St. Jacques), que diz que estamos adormecidos enquanto “eles” nos dominam como se fôssemos gado, e as breves e precárias interferências na programação de TV em que um homem afirma mais ou menos a mesma coisa com outras palavras. Depois de uma brutal invasão policial que arrasa a favela/acampamento, Nada encontra uma caixa de óculos escuros aparentemente prosaicos na paróquia do pregador. Ao colocar um par deles no rosto, descobre que o estranho, o errado, é o mundo que até então parecia normal.
O real e o fantástico
A essa altura já se passou meia hora do mais estrito realismo social, com a descrição de condições de vida, moradia e trabalho dos proletários americanos e discussões sobre a injustiça do que Frank chama de “regra de ouro”: “Quem tem o ouro dita as regras”.
É portanto sobre um sólido substrato histórico, social e político que o fantástico se instalará, e quase como um desdobramento daquele, como se a fantasia mais delirante fosse apenas uma exacerbação do real.
Em pouco tempo, Nada descobre que alienígenas estão entre nós, mimetizados em humanos, e só os óculos misteriosos permitem que sejam identificados. Num esquema clássico dos thrillers de ficção científica, ele precisa mostrar às outras pessoas o que está acontecendo, e ao mesmo tempo escapar da perseguição dos aliens e de seus aliados terráqueos.
A novidade em Eles vivem é que os invasores já ocupam postos-chave no establishment político, econômico e midiático e que todo o sistema de comunicações está dominado, transmitindo mensagens subliminares pela TV, pela imprensa e pela publicidade. Os óculos permitem que se veja o que dizem de verdade os outdoors, os jornais, os comerciais de televisão. “Obedeça”, “compre”, “não questione a autoridade” são alguns desses ditames camuflados. E numa cédula de dólar a mensagem suprema: “Eu sou seu deus”.
Como se vê, o filme de John Carpenter é uma alegoria política pouco sutil, mas de um vigor irresistível, construída com a agilidade pop, a objetividade de exposição e a energia juvenil que caracterizam o cinema do diretor. Uma referência evidente, aqui, são os filmes B de ficção científica dos anos 1950, com seus efeitos especiais modestos e eficazes – semelhança acentuada pelo fato de as imagens vistas através dos óculos especiais serem em preto e branco.
Guerra Fria ao avesso
Mas é aí que reside uma inversão desconcertante. Se os filmes B dos anos 1950 sobre invasores (O dia em que a terra parou, A guerra dos mundos, Vampiros de almas, A bolha assassina) refletiam e exorcizavam o medo do comunismo na época da Guerra Fria, os vilões alienígenas de Eles vivem são representantes do capitalismo mais voraz e sem limites. “São empreendedores”, diz um líder da resistência clandestina. “A Terra, para eles, é só mais um planeta em desenvolvimento. O Terceiro Mundo deles.”
A clareza de posições e a contundência política de Eles vivem são semelhantes às de um Bacurau, por exemplo. Não por acaso, Carpenter é um dos cineastas favoritos de Kleber Mendonça Filho, e talvez seja interessante cotejar esses dois filmes opostos e complementares. Se no lugarejo de Bacurau os invasores são repelidos com violência pelos moradores locais, aqui são os oprimidos que vão ao coração do poder opressor para tentar denunciá-lo e destruí-lo. Se conseguem ou não é algo que não vou contar aqui. Já basta de spoilers.
Duas últimas observações são necessárias. A primeira é de que o ator principal, Roddy Piper, não é canastrão por acaso. Ele não era ator, e sim astro de luta-livre, em que sempre fazia o bad guy. (Pensando bem, é uma forma de atuação.) Faz sentido para encarnar um bruto sem muito traquejo com a vida social. Sua trajetória poderia ser descrita pelo título de uma velha peça de Plínio Marcos: “Jornada de um imbecil até o entendimento”.
A segunda observação é de que mais ou menos na metade de Eles vivem há uma das brigas de rua mais longas da história do cinema, entre os amigos Nada e Frank, o primeiro tentando convencer o segundo a colocar os óculos que tudo revelam.
Num filme de narrativa ágil, objetiva, isenta de conversa jogada fora, essa prolongada sequência soa como um comentário político enfático: enquanto os oprimidos brigam entre si (e alguns deles relutam em sair do estado de ignorância), “eles” vivem – e reinam.
Sob a capa de diversão popular e ligeira (o que não deixa de ser), esse filme cujos heróis são dois operários é um estudo da alienação, isto é, da ideologia que passa por normalidade.