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A porosidade de Eros

11 de junho de 2025

O filme Eros está em cartaz nos cinemas do IMS Paulista e IMS Poços em junho.

 

O longa-metragem de Rachel Daisy começa com imagens da paisagem urbana do Recife captadas de dentro de um carro. O brilho de uma luz neon mostra o letreiro que nomeia um motel chamado Eros. Qualquer associação mais direta ao caráter divino ou erudito evocado por essa palavra de origem grega, também escolhida para nomear o longa, cai por terra. A palavra “Eros”, aqui, é um fato concreto, está posta na avenida para simbolizar uma instituição comercial e, se brilha, é para atrair clientes. Com uma câmera subjetiva, vemos o registro de alguém que entra no motel e passa por um painel eletrônico, revelando diferentes suítes para serem escolhidas mediante poucos cliques.

Em seguida, pelos reflexos dos espelhos nas paredes laterais e no teto, tão característicos desse ambiente, vemos uma mulher que se filma com o celular. Há algo de ambíguo nos seus gestos. Sua postura hesitante contraria o que se espera de um motel – quem nunca se sentiu ligeiramente inseguro ao entrar nesse ambiente associado a performances espetaculares? A incerteza de seus movimentos contraria, ainda, as imagens que costumam representar esses espaços, dominadas pelo registro pornográfico. Essa mulher – que observamos meio desconcertados – é a própria diretora do filme, Rachel. Em off, ela relata ter ido ao motel para se filmar com um parceiro, em um “exercício de intimidade de um novo casal”. Fato é que o parceiro faltou e, no tempo de espera, a diretora se deixou levar pela escuta das vozes e dos gemidos provenientes dos outros quartos. Movida pelo desejo de saber mais sobre as pessoas que estavam além das paredes opacas, decidiu realizar o filme.

Não é desprezível que essa ideia cinematográfica tenha surgido de um tempo de espera. No capitalismo das largas avenidas e do consumo 24/7, o ato de espera irrompe como uma ruptura radical dos fluxos costumeiros. Outro fator relevante é o ato de escuta diante de algo que não se vê. A avalanche de imagens a que somos submetidos pelas tantas telas presentes no cotidiano produz uma tirania do visível que tende a refratar qualquer resquício de curiosidade e imaginação do invisível. São, contudo, esses dois elementos – a espera e a abertura ao invisível – que perturbam em absoluto uma possível banalidade das imagens que viriam a compor o filme.

Após realizar uma pesquisa bibliográfica sobre motéis no Brasil, a diretora reuniu um grupo de pesquisadores. Encontraram diferentes perfis de frequentadores. Àquelas pessoas que mostravam alguma receptividade, era feito um convite quase paradoxal. Rachel solicitava que registrassem em vídeo momentos de sua "intimidade", com o objetivo de compor um documentário. A arquitetura dos motéis permitiu encontrarmos um elo entre figuras muito distintas, que raramente frequentariam os mesmos contextos sociais: um casal formado por uma mulher recém-chegada à terceira idade, que afirma manter uma vida sexual mais libertária do que a de muitas jovens; um casal homoafetivo evangélico, que se grava em cenas de sexo explícito entremeadas por discussões religiosas; adeptos do swing; duas mulheres acompanhadas por um homem fantasiado de padre, que fetichizam os interditos cristãos; uma sexóloga evangélica junto ao seu marido em busca de um espaço que permita descansar dos filhos; jovens tatuados adeptos das práticas de BDSM; uma mulher trans que se prostituía para custear seus estudos e está se despedindo de um companheiro amoroso, entre outros.

Cena de Eros, de Rachel Daisy Ellis

Apesar da rica e intrigante diversidade desses perfis, uma inquietação nos arrebata de início. Será que depois das redes sociais e de toda a pornografia amadora disponível na internet, ainda somos capazes de nos sensibilizar com imagens realizadas por pessoas – apesar de todas as diferenças – comuns? O filme não pretende esgotar os possíveis perfis de frequentadores de motéis, nem mesmo almeja extrair, de modo objetivo, informações precisas ou discursos dos mesmos. O que se espera, então, dessas imagens de “intimidade” capturadas em motéis?

Assisti Eros na ocasião de sua estreia brasileira, em janeiro de 2024, na Mostra de Tiradentes. O público, entre gargalhadas e comentários em voz alta, reagia com tanta intensidade que os instantes de silêncio é que se destacavam. Se o riso era movido por genuína empatia, deboche ou constrangimento, não há como averiguar. Fato é que algo de efetivamente íntimo e singular estava sendo exposto aos espectadores. A noção de intimidade no filme, entretanto, extrapola a representação – já banalizada – do ato sexual. O que chama atenção, por um lado, são os diferentes modos de filmar e encenar criados pelos distintos frequentadores de motel. Por outro lado, é uma certa quebra de controle dos modos de composição dos planos ou de como se portar diante da câmera o que nos toca. A montagem de Eros não privilegia a ação, mas as hesitações e os tempos mortos. Há, na duração do filme, o tempo para a espera, o tempo para se perder nas conversas e imaginar aquilo que não é mostrado.

Vemos, em diversos momentos, rastros de busca, mais do que de representação: uma câmera que se move, procurando um enquadramento ideal, alguém que pergunta “já está filmando?”, enquanto reproduz sua melhor pose. Em suma, há tempo para visualizar a errância humana que precede e abala o espetáculo. A montagem preserva traços de um processo vivo.

Segundo certas versões da mitologia grega, Eros, ícone do desejo, nasce de um encontro forçado e um tanto clandestino entre Penia e Poros. Enquanto Penia era uma figura associada à pobreza, Poros, além de astúcia, representava a riqueza. O desejo erótico, além de ser luminoso – como propõe a publicidade, as peles cintilantes dos atores pornográficos e as arquiteturas dos motéis –, guarda em sua genética certo grau de precariedade e porosidade. Parece que certa instabilidade do filme de Rachel, expressa nas esperas e nos gestos errantes dos personagens-realizadores, remete a essa faceta um tanto oculta, ou íntima – embora desejante e definidora –, de Eros.