Estranho caminho está em cartaz no cinemas do IMS Poços em agosto.
Tudo indica que o Ceará está se tornando um dos polos mais fecundos do cinema brasileiro. Este ano já tivemos A filha do palhaço, de Pedro Diógenes, e Greice, de Leonardo Mouramateus, que continuam em cartaz em algumas praças e foram comentados aqui. Agora é a vez de Estranho caminho, de Guto Parente, premiado em Havana e no festival Tribeca, em Nova York. E em breve virão Mais pesado é o céu, de Petrus Cariry, e Motel Destino, de Karim Aïnouz. Uma safra animadora de uma cinematografia vigorosa e plural.
Estranho caminho é, muito resumidamente, o encontro de um jovem cineasta com seu pai, depois de muitos anos de afastamento. David (Lucas Limeira), radicado em Portugal, volta a Fortaleza por alguns dias para apresentar seu primeiro longa-metragem (um terror experimental) num festival local. Mas justo naquele momento advém a pandemia, o festival é adiado e ele prolonga sua estada na cidade.
O sonho, o real, o fantástico
É nesse entre-lugar, uma cidade ao mesmo tempo familiar e estranha, semideserta, marcada pela desconfiança e pela reticência nas relações humanas, que o protagonista se move, como num sonho. E é num sonho, ainda no voo que o traz a Fortaleza, que lhe surge a imagem do pai (o extraordinário Carlos Francisco). Vemos na tela primeiro o pai, e só depois o filho.
O sonho, o real e o fantástico – e o cinema, como síntese dessas dimensões – se interpenetrarão de maneiras diversas numa narrativa singular, em que situações aparentemente incongruentes só ganharão sentido perto do final. A Fortaleza do filme é quase um território suspenso, um tanto sombrio, com becos escuros, ruas vazias, aterros e entulho.
Aqui é possível notar um curioso paralelo entre Estranho caminho e Greice. Em ambos, jovens cearenses radicados em Portugal voltam temporariamente a Fortaleza e se defrontam com seu passado. Mas, se no filme de Mouramateus o tom predominante é solar, aqui ele é crepuscular, tingido de melancolia e luto. Não é casual que essa fábula sobre uma relação pai-filho seja ambientada no período de trevas da pandemia e do governo Bolsonaro.
Relação esgarçada
Tudo somado, o que conta mesmo é essa relação familiar esgarçada, mas incontornável. O estranhamento e o desconforto do (des)encontro são tornados quase palpáveis nos enquadramentos – em que móveis, paredes e objetos obstruem parcialmente a visão entre pai e filho –, nas frases truncadas, nos silêncios e sobretudo na rispidez defensiva do pai.
Em A filha do palhaço, de Pedro Diógenes, a protagonista também busca uma reaproximação com o pai. Forçando um pouco a analogia, talvez se possa dizer que, ao chegar a maturidade, a geração dos jovens cineastas inquietos que há quase duas décadas criaram no Ceará o coletivo Alumbramento desenvolve hoje uma nova relação, menos tensa, com a tradição cinematográfica (o “pai”), conquistando reconhecimento internacional e uma ampliação de seu público.
Tendo isso em mente, ganha um significado extra a frase dita por David ao pai – “Que estranho caminho eu tive que percorrer para chegar até ti” –, extraída do final de Pickpocket, de Robert Bresson, que se inspirou por sua vez no Crime e castigo de Dostoievski. “Eu sempre quis usar essa frase num filme”, diz David, matizando com humor metalinguístico a dramaticidade da cena. Coisa de quem conseguiu, enfim, equilibrar a ousadia e a segurança.