A frase de Rimbaud que serve de título a este texto poderia ser uma das chaves de leitura de Nós. O que faz do filme de Jordan Peele um dos mais fortes e inquietantes da temporada, entretanto, é justamente o fato de não se deixar enquadrar numa única interpretação, mas deixar uma porção de possibilidades em aberto. Não é uma alegoria de sentido unívoco, é um formidável pesadelo.
Tudo começa quando uma família negra de classe média vai a um parque de diversões à beira-mar, em Santa Cruz, Califórnia. A filha pequena do casal, Adelaide (Madison Curry) se desgarra dos pais e, para se proteger da chuva, entra na sala de espelhos do parque. Ali se defronta com seu próprio duplo. Há então uma elipse brusca e vemos Adelaide (Lupita Nyong'o) já adulta, partindo para férias de verão com o marido (Winston Duke) e dois filhos, uma pré-adolescente e um menino de uns oito anos.
É difícil falar sobre o que acontece então sem cometer alguns spoilers, mas vamos tentar. Basta dizer que entram em cena duplos dos personagens – não só da família de Adelaide, mas também de seus amigos brancos, os Tyler, que estão um degrau acima na escala socioeconômica. São versões incultas e malvadas de cada um deles, o que suscitou a inevitável leitura da “personalidade perversa que trazemos dentro de nós”, como reedições da eterna polarização Jeckyll e Hyde.
Através do espelho
Mas o filme de Peele permite pensar em outras referências, em outras possibilidades. Descobrimos, a certa altura, que existe todo um outro mundo do lado de lá do espelho, um mundo subterrâneo e de pouca luz em que tudo parece um rascunho bruto, grosseiro, do que se passa aqui na superfície da terra. Nesse lugar vivem seres que são como versões não lapidadas de nós mesmos.
Lembremos de alguns antecedentes. No conto “The Jolly Corner”, de Henry James, traduzido no Brasil como “A bela esquina” ou “A esquina encantada”, um homem que passou toda a sua vida adulta na Europa retorna, na meia-idade, ao sobrado de sua infância, em Nova York. Aos poucos, na casa semivazia, se depara com um fantasma, que acaba por se revelar seu “outro eu”, ou melhor, o “eu” ressentido e violento que ele teria se tornado caso tivesse ficado na América.
Em Through the Looking-Glass, de Lewis Carroll, Alice rompe a superfície do espelho e encontra do outro lado um universo em que tudo ocorre ao contrário, ou de modo paródico e ensandecido. Desde a antiguidade, nas mais diversas culturas, o espelho é um signo potente e virtualmente inesgotável – e o cinema soube tirar partido de suas possibilidades plásticas, psíquicas e simbólicas.
O que há de mais perturbador no filme de Jordan Peele, a meu ver, é que as breves cenas que vislumbramos desse mundo especular se assemelham ao que ocorre nas franjas mais pobres e deterioradas do mundo real, da sociedade globalizada atual.
Juntem-se a isso as imagens, bem no início, de um anúncio televisivo de campanha da fraternidade (todos de mãos dadas, “ninguém solta a mão de ninguém”), mais o alerta de “Jeremias 11:11” reiterado ao longo da narrativa, e chegamos talvez ao seguinte: nós, que temos todos os dentes (ou quase), uma educação básica, roupas decentes e um teto a nos abrigar, tomamos isso por garantido e esquecemos de onde provimos, desse magma humano, desse barro informe que pode se desenvolver de uma maneira ou de outra, de acordo com as condições objetivas e subjetivas de cada um.
Profecia punitiva
Soltamos a mão desse nosso “outro eu” que poderia ter sido, mas que ficou para trás, no subsolo da vida, num território ínfero tão parecido com o inferno. Essa leitura, digamos, social não exclui – na verdade, reforça – uma intepretação moral, religiosa, judaico-cristã, que chama o indivíduo à responsabilidade pelo seu irmão do “lado sem luz”.
O tal versículo recorrente do profeta Jeremias afirma: “Por isso diz o Senhor: Eis que farei vir sobre eles calamidades, das quais não poderão sair; clamarão a mim, e eu não os ouvirei”. É uma profecia punitiva, um flagelo coletivo impingido aos que não seguiram a palavra divina.
Tal flagelo vem com um ataque repentino, silencioso e inexplicado dos “duplos”. A maneira como eles se comportam e como são filmados remete aos filmes de mortos-vivos de George Romero, cujo sentido político-social se explicita sobretudo em Terra dos mortos (2005), em que os zumbis tentam invadir a cidade-redoma onde vivem confortavelmente os privilegiados. Só que aqui há uma inversão: em Romero os monstros são gente que já viveu e morreu; em Nós é como se eles não tivessem chegado a viver, tal como concebemos a ideia de “vida”.
O fato é que eles vêm se vingar por causa de tudo o que lhes foi negado, como o protagonista do conto “O cobrador”, de Rubem Fonseca, que diz: “Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol”. Estamos devendo. E eles (ou “nós”) vêm cobrar.
A vertiginosa virada narrativa, perto do final (à maneira de O sexto sentido, de M. Night Shyamalan), obrigando-nos a repensar tudo o que vimos antes, mostra que Jordan Peele, diretor do também extraordinário Corra!, domina como poucos os códigos e recursos convencionais para criar um universo próprio, onírico, desconcertante, que nos lança violentamente para dentro de nós mesmos.