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Qual cinema argentino?

21 de março de 2019

A chegada quase simultânea de três filmes argentinos ao circuito exibidor brasileiro ajuda a matizar a expressão genérica “cinema argentino”, usada com tanta frequência em comparações desfavoráveis ao “cinema brasileiro”. Vistos em conjunto, os três atestam um padrão básico de qualidade técnica e maturidade narrativa daquela produção. Observados individualmente, mostram que nem tudo o que se produz ali escapa a um certo ramerrame estético e temático predominante em boa parte do cinema feito hoje no Brasil e no mundo.

Dos três, apenas um, Minha obra-prima, de Gastón Duprat, revela uma marca autoral, uma inquietação, uma centelha de surpresa. Os outros dois – Um amor inesperado, de Juan Vera, e Uma viagem inesperada, de Juan José Jusid – podem ser enquadrados, apesar de seus títulos, na categoria dos filmes cômodos, confortáveis, que apenas reforçam ideias, gostos e sentimentos predominantes no senso comum. Filmes sem assinatura que a gente vê com prazer e esquece com facilidade, como diria o crítico Inácio Araujo.

 

Arte e sociedade

Minha obra-prima, primeiro longa assinado individualmente por Gastón Duprat, leva adiante a exploração de um tema constante nos trabalhos que ele codirigiu com Mariano Cohn (El artista, O homem ao lado e Cidadão ilustre): as relações acidentadas entre arte e sociedade, criação artística e moral, e também, subsidiariamente, entre uma Argentina com pretensões modernas e cosmopolitas e uma Argentina popular, mais selvagem e contraditória.

 

 

Num resumo bastante redutor, é a história de Renzo Nervi (Luis Brandoni), um pintor irascível e antissocial, que teve seus anos de glória e hoje nem consegue pagar o aluguel do apartamento, e seu amigo marchand Arturo Silva (Guillermo Francella), que tenta de vários modos salvá-lo do desprestígio e da bancarrota.

Narrado retrospectivamente por Arturo, que se apresenta logo de início como “galerista e assassino”, o filme questionará com leveza e autoironia o lugar da arte no mundo do consumo globalizado e da publicidade onipresente.

O método narrativo, por assim dizer, é o do “suspense cômico”, já presente nas obras anteriores do diretor com Mariano Cohn (que desta vez é o produtor), e produz momentos inspirados, como aquele em que artista e galerista, dois homens de idade, invadem o apartamento de uma namoradinha do primeiro para reaver um quadro. A inauguração de um mural no saguão da nova sede de uma grande empresa rende outra passagem memorável.

Outra qualidade dos filmes anteriores da dupla que reaparece aqui é a percepção privilegiada do espaço e dos ambientes, seja o de uma praça de Buenos Aires, de um edifício empresarial modernoso, de um ateliê bagunçado, de um restaurante chique ou de um chalé nos Andes. Uma das passagens mais marcantes nesse sentido, ao menos para nós, é a cena que se passa no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, com suas formas de disco voador em contraste com a esplendorosa paisagem da baía da Guanabara. É um espaço manjado, mas a maneira como Duprat o filma valoriza sua força única.

Nada escapa ao olhar crítico de Duprat: a imoralidade do mercado de arte, a hipocrisia do mecenato, a ingenuidade de certas causas humanitárias, a vacuidade de todas as modas. Se há uma ressalva que pode ser feita é justamente a uma certa acidez que beira o cinismo, mas isso de certo modo é matizado pela autoironia, como se os próprios realizadores dissessem: isto é só um filme, fazemos parte dessa engrenagem, não somos melhores que ninguém.

Coprodução com a Espanha, Minha obra-prima tem no elenco o madrilenho Raúl Arévalo, que trabalhou, entre outros, em Os amantes passageiros, de Pedro Almodóvar.

 

Uma viagem inesperada

Embora não seja, formalmente, uma coprodução com o Brasil, Uma viagem inesperada começa e termina no Rio de Janeiro e tem no elenco a brasileira Débora Nascimento. Seu protagonista, o engenheiro Pablo (Pablo Rago), trabalha em plataformas petrolíferas em águas fluminenses, mora no Rio e fala um portunhol sofrível. [o trailer: https://www.youtube.com/watch?v=Ao_WJBEE9R0 ]

Fiel à fórmula “acontecimentos imprevistos colocam o personagem em crise e o levam a reconsiderar seu passado e reinventar sua vida”, tudo acontece ao mesmo tempo: a ex-mulher liga de Buenos Aires para dizer que o filho adolescente dos dois está com problemas graves, a namorada carioca revela que está grávida, a empresa o pressiona com prazos e exigências.

A tal viagem inesperada a Buenos Aires e depois a Bolívar, no interior argentino, terá vários acidentes, surpresas e reviravoltas, mas parece que todos foram concebidos para expressar clichês e estereótipos das relações entre pais e filhos, adolescentes e escola (e bullying e sexo e drogas e tecnologia), lavagem de roupa suja de pais separados, conflito entre trabalho e vida privada etc. Para efeito de contraste, o mesmo universo é tratado com muito mais rigor e vitalidade no brasileiro Ferrugem, de Aly Muritiba.

Há, por trás da aparente turbulência do entrecho, uma sistemática reiteração do senso comum e da correção política: as feridas se curam, os ruídos se amortecem, tudo se ajeita, quase como numa versão ficcional dos livros de autoajuda. Com uma mise-en-scène convencional e pouco inspirada, não é propriamente um filme ruim, mas simplesmente mediano, redundante, dispensável.

 

Um amor inesperado

Num patamar bem superior, em termos de competência narrativa e qualidade da encenação, Um amor inesperado não deixa também de acenar com o imprevisto para entregar o que, no final de contas, todos esperam.

 

 

Há ali também um casal de classe média de meia-idade, o professor universitário Marcos (Ricardo Darín) e a psicóloga Ana (Mercedes Morán), que ficam desorientados quando o filho parte para estudar na Europa. Evidencia-se então o vazio do casamento, depois de 25 anos, e cada um deles tenta se reinventar no “mundo lá fora”.

A situação oscilante do casal, a tensão liberdade x segurança afetiva, tudo isso lembra O fundo do coração, só que no filme de Juan Vera (competente produtor de obras de Lucrecia Martel e Pablo Trapero) falta aquilo que transborda no de Coppola: a invenção visual, o risco do excesso, a paixão pelo cinema.

Há uma cena visualmente inspirada, a primeira, em que uma câmera alta, vertical, percorre uma biblioteca até chegar ao protagonista, que estava proferindo as frases iniciais do Moby Dick como se falasse de si mesmo. Depois disso, entra-se numa decupagem acomodada, em que tudo se resolve nos diálogos e no campo/contracampo.

A exemplo de Uma viagem inesperada, os problemas surgem só para ser resolvidos em seguida, as ações dos personagens são aquelas que uma pessoa sensata e civilizada faria, tudo é verossímil, lógico e, em última análise, agradável e inofensivo. Mas os atores são bons, os diálogos, bem escritos. São duas horas que passam de modo indolor, divertem um pouco, não fazem mal a ninguém. Para muitos espectadores, é o que basta.