de: Fábio Leal
para: Marcelo Caetano
data: 06 de nov. de 2024, 09:42
assunto: eu sei que é assim
ei, marcelo! ontem voltei da sessão de baby chateado por só ter conseguido dizer parabéns, muito bom” pra você. não gosto muito de estreias. da necessidade de emitir uma opinião sobre o filme imediatamente após o fim. vi um rapaz tascando quatro estrelas e meia no letterboxd ainda durante os créditos. sei lá, os filmes que mexem comigo trilham um caminho diferente, vão acendendo memórias.
lembrei muito de maria bethânia no seu filme, mesmo ela não estando presente nem em imagem nem em som. mas lembrei dela assim que o filme começou. primeiro com aquela cena inicial chiquérrima, belíssima, com o tambor dando o tom. ela me ligou, via som, a outro momento de um filme seu, na sua companhia. marcela do nascimento incorporando bethânia, por sua vez acompanhada somente do tambor, cantando
“que sina a tua, meu peito
que nunca estás satisfeito
que dás tudo... e não tens nada”
esse fado podia caber também pro seu protagonista de agora, wellington, saindo da prisão sem um puto no bolso, sem eira nem beira, sem pai nem mãe. quando wellington é batizado de baby, bethânia invadiu minha cabeça de novo. obviamente me lembrei de “baby”, a canção de caetano, mas na versão do disco recital na boite barroco. quase todo mundo canta essa música numa forma meio contida. já bethânia grita aos brados: “BABY BABY EU SEI QUE É ASSIM, I LOVE YOU, HÁ QUANTO TEMPO...”
seus personagens aqui amam nessa voltagem bethânica, são intensos na mesma proporção que suas vidas, aqui todo mundo tá por um fio. o que tá em jogo não é a liberdade, sei lá, de ser ou não ser monogâmico, por exemplo. é a liberdade literal de estar ou não trancado num presídio. é viver a vida ou ser morto pela polícia do tarcísio. a vida real não é interrompida pra que o romance aconteça, tudo tá misturado, tudo é arriscado.
e, por falar em risco, eu adoro que você não problematiza o fato de ronaldo ser bem mais velho que baby. um amigo, erneste, cita sempre aquele filósofo emanuele coccia, que diz que o conceito de geração é uma ideia fascista. peraí que vou precisar te mostrar esse trecho da entrevista do coccia.*
“a ideia de geração é em si uma ideia bastante fascista. a ideia de que existam umas verdades compartilhadas, só em função do compartilhamento de uma época de nascimento. essa ideia me parece não só boba, mas também muito perigosa. talvez o que você diz, que eu não sou millennial, mas apesar disso posso ser associado a eles, significa que algo em mim não corresponde de nenhuma maneira à minha geração, e talvez essa seja a realidade de todos. biologicamente, o nosso corpo é composto por peças que provêm de gerações de épocas distintas. do ponto de vista genético, há pedaços de mim que provêm da minha mãe ou do meu avô, e há pedaços juntados de última hora, como um balde japonês que tem peças muito antigas e algumas recentíssimas. sou, então, intergeracional, e também intercultural, porque misturo continuamente elementos que chegam da minha filha com formas culturais que provêm da idade média. [...] quando se começa a conhecer um pouquinho as árvores, ao entrar num bosque nos damos conta que estamos em um espaço cronologicamente louco, porque não só as árvores e as plantas não têm a mesma idade, mas cada uma das espécies provém de épocas distintas. uma floresta, portanto, testemunha essa assincronia fundamental de tudo aquilo que vive, e é isso que faz com que uma cultura seja viva, o fato de que um discurso possa incluir dentro de si expressões e palavras que vêm de idades completamente incompatíveis, idades de nascimento e históricas.”
seu filme é uma floresta, né? é um filme inter. tem pardo, preto, branco, gordo, magro, bombado, gay, bi, homem, mulher, cis, trans, bear, twink... eu gosto de pelo menos pensar que estar permeável por pessoas completamente diferentes de nós é possível. a possibilidade da mistura.
mas tem algo que une todos os seus personagens. e aí chegamos à última (eu juro!) lembrança que eu tive de bethânia. um depoimento que ela dá no filme os doces bárbaros pra um jornalista podre.
“ − você não se identifica com rótulo nenhum?
− nenhum, sou meio à margem.
− marginal?
− à margem.
− qual é a diferença?
− modo de falar. mais elegante.”
toda a fauna e flora do seu filme se equilibra nesse entre. são pessoas à margem que são constantemente empurradas para uma assim chamada marginalidade. e ser marginal é infinitamente melhor do que ser assimilado por uma sociedade que, na melhor das hipóteses, nos tolera. e o mais bonito do seu filme é que essas pessoas que você criou não são definidas pelos delitos que cometem, e sim pela forma como amam.
quero que pinte pra mim também um amor-bethânia. e um amor-bethânia não é liso, tem a aspereza da voz dela e da própria vida real e de viés (poxa vida, preciso parar de enfiar citações a músicas de caetano também, mas não consigo). existe um movimento cada vez mais forte dentro desse recorte nosso (esquerda progressista artista etc.) de tirar a complexidade e contradição das coisas, colocar tudo de forma maniqueísta. mas, se a gente quiser ser justo com o amor, não dá pra colocar nesses termos de bonzinho e mauzinho, né? como somos escrotos com quem a gente ama, como são violentas as bichas que nos amam, e como isso tá colado com maravilhosidades que fazemos e que nos fazem. no instagram dá pra pregar o contrário, mas só lá. um outro amigo, thiago, me mandou um áudio uma vez dizendo que “a violência é uma parte das nossas relações que, na era da autoajuda virtual, a gente tenta muito botar pra baixo do tapete ou resolver de formas muito neoliberais, do tipo ‘se alguém não contribui com a sua vida, jogue fora!’”. como se fosse fácil jogar um amor fora sem que boa parte do que nos constitui naquele momento vá junto. (por favor, marcelo, não mostra este e-mail pra ninguém ou vou ser cancelado, acusado de louvar a violência e a toxicidade das relações!! nem sei se te mando este e-mail, na verdade…)
mas, enfim, agora, sim, de novo, e mais uma vez: parabéns, muito bom.
*a entrevista toda do coccia tá aqui:
O filme Baby está em cartaz no cinema do IMS Paulista e IMS Poços em janeiro.