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As cores da estupidez

07 de março de 2024

Ficção americana, de Cord Jefferson, não foi lançado (ainda) nos cinemas brasileiros, embora concorra a cinco Oscars, incluindo o de melhor filme, mas está disponível no Amazon Prime desde a semana passada e merece muito ser visto.

Inspirado no romance Erasure (2001), de Percival Everett, é uma sátira demolidora das maneiras como a indústria cultural norte-americana absorve, pasteuriza e distorce as tensões raciais, muitas vezes com a cumplicidade dos próprios afro-americanos.

Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey Wright) é um escritor e professor universitário negro que escreve romances literariamente refinados que pouca gente lê. Perde o emprego na universidade por não compactuar com a hipocrisia reinante de censurar livros de outras épocas pelo uso de palavras politicamente incorretas, como nigger. É acusado de racismo por uma de suas alunas mais brancas.

 

Estereótipos da negritude

O mercado, a mídia, os jovens leitores, todos esperam dele uma literatura mais “negra”, isto é, que fale de crimes, drogas, violência policial, a vida dura nos guetos. Mas Monk é de uma família de médicos de classe média e nada tem a ver com esses estereótipos. Apertado pela necessidade de dinheiro e estimulado por seu agente, ele acaba cedendo e escrevendo um livro cheio de gírias, palavrões, abusos e contravenções, assinado por um pseudônimo, Stagg R. Leigh – supostamente um ex-detento fugitivo da justiça.

Entre parênteses: “nossos” racistas são mais toscos, atacando e censurando o romance de um autor negro (O avesso da pele, de Jeferson Tenório) sob a alegação de que contém linguagem “chula e obscena” – justo a linguagem que se espera de Monk ou de Stagg R. Leigh em Ficção americana. Fecha parêntese.

Em sua estreia na direção, o tarimbado roteirista negro Cord Jefferson extrai o máximo de humor e de desconcerto dessa duplicidade de seu protagonista. Ao mesmo tempo em que lida com seus dramas pessoais e familiares – o suicídio do pai, o Alzheimer da mãe, as desavenças com o irmão gay (Sterling K. Brown), o namoro com uma advogada (Erika Alexander) –, o sofisticado Monk tem que dar vida a seu desbocado heterônimo, autor do explosivo My pafology, rebatizado de Fuck para fins comerciais.

Com diálogos sagazes e um humor visual quase sempre certeiro, Ficção americana vira do avesso os clichês habitualmente mobilizados pela cultura mainstream norte-americana e internacional ao abordar a realidade dos afro-americanos.

Embora toda a narrativa se desenvolva a partir do seu ponto de vista, Monk não escapa ileso da crítica do filme. Logo depois de dizer que “não acredita em raça”, por exemplo, ele é deixado na mão por um taxista que o ignora para pegar um passageiro branco alguns metros adiante.

 

Elogio da ficção

Num dos momentos mais inspirados do filme, o escritor está sentado ao computador, criando seu romance “autenticamente negro”, enquanto dois marginais, seus personagens, discutem asperamente à sua frente, à espera de suas orientações para o diálogo e os gestos. É como se o escritor fosse, ali, um diretor de teatro ou de cinema. Lembra um pouco o genial Providence (1977), de Alain Resnais, em que parte da narrativa se passa na cabeça do protagonista escritor.

O sentido mais importante do filme talvez esteja embutido em seu título. Numa passagem crucial, Monk se revolta, numa livraria, ao ver seus romances “sérios” enfileirados na estante de “estudos afro-americanos”. “Deve ser porque o autor é negro”, explica o abobado atendente. Monk recolhe os livros e os leva altivamente para a seção de “ficção americana”.

Para além da questão racial, o que está em xeque aqui é a tendência atual de valorizar a literatura como depoimento, denúncia, “representatividade”, em detrimento da imaginação e da elaboração estética. Ficção americana aposta, acima de tudo, no poder da ficção. Nisso reside a sua tomada de posição contra o racismo – e contra a estupidez de qualquer cor.