A mostra Gordon Parks: a América sou eu está em cartaz no cinema do IMS Paulista em dezembro.
São muitas as perspectivas que podem guiar as interpretações das obras e dos caminhos da carreira do artista Gordon Parks. Aqui, o desejo é falar de Gordon, o diretor de filmes cujo arco vai do registro das mazelas de uma favela carioca, no início dos anos 1960, ao balé telefilmado em tributo à vida de Martin Luther King Jr., no início da década de 1990. Uma carreira que se relacionou com pelo menos cinco momentos da indústria cinematográfica e audiovisual americana: os “social problem films” – ou filmes de denúncia social –; a rebarba da era do Technicolor em Hollywood; o cinema blaxploitation; a reorganização da indústria, no final da década de 1970; e, por fim, o sistema público de comunicação estadunidense na promoção de debates junto à sociedade através do audiovisual.
É possível mirar Gordon, o diretor de filmes, como parte de uma tradição cinematográfica negra estadunidense de realizadores que navegam entre tecer críticas sociais, atingir um público amplo e habitar o sistema de produção mainstream – uma dança que nomes como Spike Lee, John Singleton e, mais recentemente, Ava DuVernay e Ryan Coogler toparam dançar. Um outro prisma de observação seria mirá-lo, tal como fazemos com William Greaves, como um indivíduo que entra para o mundo das artes por meio de uma outra linguagem artística, e eventualmente chega à direção de filmes, movido também pelo desejo pedagógico, de investigação histórica e fomento a um debate racial na sociedade na qual estavam inseridos. Ou, por fim, se recortarmos o último trecho de sua carreira como diretor, encontraríamos um inesperado diálogo entre seus gestos de realização e os de Marlon Riggs.
Ou seja, essas tentativas de aproximações, além de buscar oferecer contexto para sua prática cinematográfica, indicam a versatilidade de Gordon Parks, o diretor, bem como apontam para a dificuldade de construir um discurso totalizante acerca de sua obra – ou, até mesmo, de dividi-las em fases, metodologia comumente utilizada por pesquisadores dos estudos de cinema quando investigando realizadores sob o paradigma da autoria. Reconhecer a limitação dos discursos totalizantes acerca de seus filmes não nos impede, contudo, de identificar recorrências temáticas, convenções estéticas e preferências de abordagem.
Talvez o traço mais marcante de seu engajamento com a direção de filmes seja o interesse em biografar, mesmo que o gênero documental tenha sido uma presença minoritária em sua carreira. Dentro dessa predileção pelo gesto biográfico, Parks demonstra um interesse inquebrantável em homens negros heterossexuais e suas histórias de protagonismo[1] – outro traço que aproxima sobremaneira seus filmes dos de Ryan Coogler, ainda que tal conexão pouco tenha sido feita aqui no Brasil, mesmo com as inequívocas intersecções entre Pecadores (Sinners, 2025) e Leadbelly (1976). A obra cinematográfica de Parks é preenchida por biografias de heróis ficcionais – Shaft (1971) e O grande golpe de Shaft (1972) –, reais – Martin (1990) – e também o romances de formação biográfico – Com o terror na alma (The Learning Tree, 1969). Há os gestos documentais biográficos[2]
– Flavio (1964) e The World of Piri Thomas (1968) –, o autorretrato sob o prisma de uma vida de feitos – Momentos sem nome próprio (Moments Without Proper Names, 1987) – e, por fim, as cinebiografias de fato – Leadbelly (1976) e Solomon Northup’s Odyssey (1984).

Cineasta das esquinas urbanas ou da vastidão interiorana?
O sucesso comercial de Shaft não apenas catapultou o então modelo Richard Roundtree para o sucesso como também dominou o imaginário ao redor da obra cinematográfica de Gordon Parks. Quem se debruça sobre a totalidade de seus filmes descobre, contudo, que, a despeito de Shaft ser um filme tão preto quanto nova-iorquino, Parks é um cineasta tanto das esquinas de Manhattan quanto das paisagens agrícolas e interioranas.
Talvez seja justamente ao filmar espaços rurais dos interiores estadunidenses que Parks demonstre ao máximo seu senso de decupagem, movimento e cores. Não é exagero, então, olhar para filmes como Leadbelly e Com o terror na alma e especular que se trata de um cineasta cuja mise en scène estabelece um franco diálogo com mestres do artesanato fílmico, como John Ford e Howard Hawks. A cultura caipira do Meio-Oeste de Com o terror na alma e a profusão do Technicolor trazem também traços que nos remetem fortemente a Tudo que o céu permite (All that Heaven Allows, 1955), de Douglas Sirk. É como se, ao olhar para o Sul e para o Meio-Oeste na década de 1970, Parks espelhasse a mirada de Ford e Hawks para o Oeste e de Sirk para o Meio-Oeste entre as décadas de 1940 e 1950.
Gordon Parks é, então, não apenas um patrimônio afro-americano do cinema, mas também um cineasta da América, tal como James Baldwin é um escritor que entoa, com criticidade e lucidez, a América.[3]
Nesse sentido, é extremamente simbólico que os filmes de Parks feitos para a televisão na década de 1980 tenham se debruçado sobre personagens cujas biografias representam a luta pela liberdade das populações negras ao redor do mundo, bem como a busca de afro-americanos pela promessa de acesso às benesses da América. Solomon Northrup’s Odissey biografa um homem livre que foi ilegalmente capturado, escravizado e, após 12 anos, tornou-se livre novamente e escreveu sua própria história.[4]
Em muitos sentidos, um filme menor de Parks, no qual o diretor não logrou exercer seu domínio da encenação e do espaço. Ainda assim, um filme que merece apreciação por suas qualidades pedagógicas.
No arrebol de sua atuação como diretor de filmes, Parks realiza Martin, o mais difícil de classificar dentro de sua carreira cinematográfica. Trazendo à luz um real herói americano – Martin Luther King Jr. –, Parks reuniu numa única obra suas diferentes motivações artísticas: interesse pela história afro-americana, biografar heróis e sua dimensão não apenas de músico, mas também de compositor de peças musicais clássicas.[5] Híbrido entre balé filmado, programa jornalístico com altos valores de produção e documentário que visita a trajetória fotográfica de Parks, Martin é tão estranho quanto bonito, tão cafona quanto corajoso, além de repleto de comentários visuais acerca da promessa estadunidense de direitos amplos. Em Martin, é justamente no momento em que se apresenta a suposta grandeza da América – a chegada à lua – que acontece o assassinato de Martin Luther King Jr., num paralelismo temporal criado por Parks para comentar a dualidade da América: um lugar tanto de grandes quanto de horrendos feitos.
A América tem de agradecer por artistas como Gordon Parks não terem desistido dela e de suas promessas.
[1] The Super Cops (1974) é uma evidente exceção, pois protagonizada por dois atores brancos.
[2] Em Diary of a Harlem Family (1968), Parks assina a fotografia e a narração, além do ensaio fotográfico a partir do qual o projeto do filme surgiu. Uma visão mais expansiva de autoria poderia incluir o curta-metragem nesse gesto documental biográfico.
[3]Se fôssemos seguir com os paralelos entre cinema e literatura, seria possível especular que Marcus, o personagem-problema de Com o terror na alma, trava uma conversa direta com Bigger Thomas, protagonista de Filho nativo (1940), obra-prima de Richard Wright.
[4] O mesmo personagem seria objeto do filme 12 anos de escravidão (12 Years a Slave, 2013), de Steve McQueen.
[5] Parks, que começou sua vida artística como pianista, faz parte de um seleto grupo de realizadores que compuseram trilhas para seus próprios filmes, como fizeram Dario Argento, John Carpenter, Satyajit Ray, entre outros.
