Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

História “de empregada”

10 de outubro de 2022

“Em se tratando de Brasil, não tem quem não tenha uma história sobre uma empregada para contar”, ouvi esses dias quando estava num boteco e escutava conversa da mesa alheia num happy hour qualquer.

A declaração foi recebida com entusiasmo na mesa: mulheres e homens, já alegrinhos de tantos drinques, disputavam aos berros a oportunidade de contar a sua história de empregada. E saiu de tudo: a empregada que foi quase a mãe, que perguntava das festinhas da escola e dava colinho, a empregada gostosa que alguém ficava vigiando enquanto tomava banho, a empregada analfabeta, mas de coração, porque devotou a vida a uma família para quem trabalhou,  a que deu o golpe na patroa e a empregada que roubava leite Ninho. Entre gargalhadas e lágrimas etílicas e emocionadas, o grupo seguiu noite adentro nessas memórias.

Em comum entre todas as histórias contadas, o fato de que nenhuma delas possibilita o reconhecimento de cada uma das mulheres na sua dimensão de trabalhadora, na sua dimensão de pessoa humana e na sua dimensão de potência. Mas, para usar a frase do boy: em se tratando de Brasil... não tem nada de novo né?

O Brasil tem a maior quantidade de pessoas empregadas em trabalho doméstico no mundo. São mais de seis milhões de pessoas. Noventa e quatro por cento são mulheres. Mais da metade são pessoas negras, e 4,5 milhões estão sem carteira assinada.

Último país do mundo a abolir formalmente a escravidão, o processo abolicionista no Brasil, que foi indenizatório para os proprietários de seres humanos escravizados, não previu a integração dessa massa de trabalhadoras e trabalhadores ao projeto de nação. Longe disso: criou regras que determinaram a impossibilidade de matrícula em escolas, de acesso a terras, estabelecendo que a rua, a miséria e a prisão seriam os espaços destinados a esse grupo populacional.

No Brasil, o tráfico de escravizados a partir da África foi maior do que em qualquer outro país do mundo, o que significa que o custo para aquisição era baixo, possibilitando que a posse de seres humanos escravizados fosse comum inclusive para famílias não abastadas. Nesse contexto, diante da ausência de terras e trabalho agrário, era muito comum que essas pessoas escravizadas estivesse dentro das casas, o que contribuiu para o fato de que, após a abolição, houvesse a permanência nas casas. Embora não fossem mais escravizadas, tampouco alcançaram o reconhecimento da sua condição de trabalhadoras livres. Essas pessoas seguiram nas casas, trabalhando, mas agora “como se fossem da família”, numa espécie de devoção ignorante e assustada, como a Tia Nastácia das histórias de Lobato.

Os fatos que geraram gargalhadas e lágrimas na mesa do happy hour são reais, mas têm outros nomes: o trabalho doméstico no Brasil tem entre suas principais marcas a vivência constante de episódios de violência física, violência verbal, denúncias de violência sexual e exploração do trabalho de meninas. Quando se soma a isso tudo a manipulação inadequada de produtos abrasivos, risco de ataques e mordidas de animais domésticos, acidentes, impactos na coluna, em função de carregar peso e arrastar móveis, fica fácil entender por que a Organização Internacional do Trabalho classifica o trabalho infantil doméstico como uma das piores formas de trabalho infantil. Existem inúmeros relatos de trabalhadoras que perderam sua vida ao despencar de varandas durante faxinas, com casos relatados como suicídio pelas famílias contratantes – como se alguém fosse se suicidar com desinfetante, vassoura e pano de limpar nas mãos. Há pessoas que dizem ter “herdado” trabalhadoras de suas mães e outras que costumam “emprestar” trabalhadoras domésticas para a casa de amigos.

Trabalhadoras domésticas estão em luta pela efetivação de seus direitos trabalhistas há décadas. Nascida em 1906, Laudelina de Campos, mulher negra nascida em Poços de Caldas, fundou a primeira organização de trabalhadoras domésticas em 1936, em Campinas. Somente longos anos depois (na Constituinte de 1988) se deu parte de um reconhecimento de sua condição de trabalhadoras, mas não a equiparação de seus direitos trabalhistas aos de demais categorias profissionais. A luta das trabalhadoras domésticas, entretanto, seguiu e segue, e nesse ponto o incrível Marte Um e o poderoso documentário Digo às companheiras que aqui estão cumprem um poderoso papel na disputa de um novo imaginário e uma nova relação com o trabalho e as trabalhadoras domésticas.

Cena de Marte Um, de Gabriel Martins (Divulgação)

Em Marte Um, temos uma presença de trabalhadora doméstica raramente vista em produções no Brasil. Tércia, personagem da impressionante Rejane Faria, é uma mulher negra, que trabalha como diarista e é revelada numa complexidade de afetos, perspectivas sobre a vida e a morte, relações com família, amigas e sonhos que trazem dimensões completamente apagadas dos relatos de trabalho doméstico no Brasil. Tércia é polissêmica: terna com filha e filho, firme e generosa com o companheiro, sexy junto às amigas, cuidadosa com patroa e patrões. Tércia é complexa como todo ser humano, tem múltiplas dimensões, dentre elas a de trabalhadora doméstica, alguém que realiza um trabalho de jornada intensa, sujeita a caprichos e à instabilidade de uma relação desprotegida legalmente e cuja precária remuneração incide diretamente na qualidade de vida e saúde emocional dessa mulher: é de cortar o coração a cena em que a personagem recebe a notícia da viagem da patroa e percebe o quanto isso vai impactar seu orçamento. E Tércia segue sendo complexa, mas exercendo um trabalho que a mescla com a vida privada de seus patrões, expõe as intimidades, e ela se cola de tal maneira na casa que fica invisível, embora completamente necessária.

Se em Tércia percebemos a complexidade da mulher negra trabalhadora doméstica, é no documentário Digo às companheiras que aqui estão que o público tem de lidar com a incontornável verdade sobre o trabalho doméstico no Brasil e aprender a chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. Enfocado na vida e na luta de Lenira Maria de Carvalho, uma das mais importantes lideranças do movimento de trabalhadoras domésticas no país, o documentário destaca a resistência, a inconformidade e o papel ativo desempenhado por essas mulheres na construção do reconhecimento de seus direitos. A despeito de uma cultura racista que objetifica, infantiliza e estereotipa perversamente as mulheres trabalhadoras domésticas, no documentário é possível aprender como essas mulheres organizadas em movimentos de enfrentamento foram essenciais para a construção de sua equiparação trabalhista e também para a construção da democracia no Brasil.

Em outubro celebramos a vida de Laudelina de Campos Melo, celebramos Lenira, e nelas toda a resistência de mulheres trabalhadoras domésticas. Nessa data, convidamos o público para se relacionar com a urgência de se comprometer com o fim da exploração do trabalho doméstico no Brasil, com o reconhecimento das mulheres trabalhadoras domésticas na sua condição de trabalhadoras, abandonando essa ideia perversa de “devoção” e “quase da família”, que se comprometam a respeitar seus direitos e, como diz Lenira, sejam respeitadas em sua dignidade enquanto trabalhadoras domésticas.

Com a exibição do filme Marte Um e do documentário Digo às companheiras que aqui estão, deixamos a provocação para que as pessoas possam pensar bem qual história de empregada vai decidir protagonizar e contar. Que todos tenham em conta que, ao apostar em contar a história das trabalhadoras domésticas, de sua vivência e resistência em sua inteireza e complexidade, rompe-se com práticas que se iniciaram na escravidão, e também que se conectar com a atuação das trabalhadoras domésticas na história do Brasil é o único – e necessário – caminho para de fato construirmos resistência e vivermos alteridade e antirracismo.

* Viviana Santiago é coordenadora de Diversidade e Inclusão do IMS