Um romance da grandeza (literária, política, psicológica, moral) de Ilusões perdidas, de Balzac, tem tudo para intimidar quem queira levá-lo ao cinema. O francês Xavier Giannoli enfrentou o desafio com um misto de reverência e altivez – e se deu bem. Seu filme dialoga com o livro sem passar vergonha, o que não é pouco.
Consciente da impossibilidade de abarcar o caudaloso romance em sua integridade, a primeira providência do diretor, com seus roteiristas, foi estabelecer um recorte que preservasse o âmago da obra ou, talvez, aquilo que nela permanece mais vivo e mais significativo para o espectador de hoje. Assim, o filme se concentra na segunda das três partes do livro, “Um grande homem de província em Paris”.
Estamos na Paris do início dos anos 1820, época da Restauração dos Bourbon, um retorno parcial e temporário ao antigo regime aristocrático derrubado pela revolução de 1789. É nessa metrópole agitada por uma acirrada guerra cultural entre liberais e monarquistas, sobretudo na imprensa, que o jovem aspirante a poeta Lucien Chardon (Benjamin Voisin), recém-chegado da provinciana Angoulême, tenta se firmar, usando o sobrenome aristocrático da mãe, “de Rubempré”.
Corrosão ética
Assim como no romance, o filme narra então simultaneamente duas histórias: a dos embates e reviravoltas político-culturais da época e o da corrosão das ilusões e valores morais de Lucien. É ao mesmo tempo um painel histórico-social e um conto moral, tendo como palcos principais as redações de jornais, os salões da aristocracia e os teatros, tanto os sofisticados como os populares, ditos “de bulevar”.
A corrosão ética do “grande homem de província” é paralela à da sociedade de seu tempo. As relações promíscuas entre a imprensa, a política e as artes são o terreno fértil em que germinam todos os vícios.
Aqui cabe chamar a atenção para uma decisão significativa de Giannoli e seus roteiristas. No livro de Balzac, mantém-se sempre um jogo de oposições entre um polo virtuoso (representado pela irmã de Lucien, Ève, pelo impressor Davi Séchard, melhor amigo do protagonista em Angoulême, e pelos escritores e intelectuais reunidos no Cenáculo, em Paris) e um polo depravado, composto por jornalistas venais, políticos corruptos, aristocratas ardilosos, vigaristas, alcoólatras, cafetões, prostitutas. Do filme, Ève, Séchard e o Cenáculo estão completamente ausentes. Excluída a virtude, só resta o vício. A única exceção fica por conta da jovem atriz Coralie (Salomé Dewaels), apaixonada por Lucien e personagem mais vulnerável de toda a trama.
Tudo somado – ou melhor, subtraído –, resta talvez aquilo que fala mais fundo a nossa própria época: a gênese das fake news, a destruição sistemática de reputações, a venalidade da imprensa, o jogo sujo de interesses materiais e políticos, a contaminação da intimidade pelas relações de poder. O mundo como um grande teatro, a vida social como uma fogueira das vaidades. Balzac era um visionário, e o filme valoriza isso.
Mas Balzac era também um narrador “de entretenimento”, que publicava seus livros em fascículos na imprensa. Um escritor de folhetim, hábil e prolífico em seu realismo clássico.
Narrativa clássica
De certo modo, o filme de Xavier Giannoli, por respeito ou segurança, se escora numa narrativa analogamente realista e clássica, sem grandes arroubos de invenção. Todos os recursos do meio são acionados de modo a dar transparência e fluência ao enredo e aos personagens. A mudança mais evidente, em relação ao texto original, é o estabelecimento de um ritmo de narração mais acelerado, de planos curtos e elipses eficazes, em contraste com o andamento mais sinuoso de Balzac, que alterna cenas velozes e passagens mais lentas, de contemplação e/ou reflexão.
Haverá quem acuse Ilusões perdidas de reincidir, com sua reconstituição suntuosa de época, no “cinema de qualidade francesa” que vigorava nos anos 1950 e foi execrado como acadêmico pela geração da Nouvelle Vague. Os sete prêmios César conquistados (incluindo o de melhor filme) talvez reforcem essa ideia. Mas sua contenção formal, ou respeito às convenções narrativas, não resvala, a meu ver, no academicismo, pois não encara o livro original como uma peça de museu, intocável, e sim como uma força viva capaz de nos comover, comprovando a frase de Italo Calvino: um clássico é um livro que não cessou de dizer o que tinha a dizer.