Um jardineiro-chefe erudito e meticuloso em seu ofício tem um passado sombrio, uma vida anterior contrastante com a delicadeza com que trata suas sementes, flores e adubos. Brutalidade e jardim: o velho dístico criado por Oswald de Andrade vale para resumir Jardim dos desejos, do veterano Paul Schrader.
Narvel Roth (Joel Edgerton), o jardineiro em questão, trabalha nos canteiros e estufas da magnífica propriedade de Norma Haverhill (Sigourney Weaver), uma herdeira de senhores de escravos do sul dos Estados Unidos, personagem um tanto enigmática e ameaçadora, apesar das maneiras refinadas e da atuação filantrópica.
Desde o início, por trás das imagens plácidas, do ritmo contemplativo, das cores suaves e dos diálogos cordiais, percebe-se que há algo estranho, perturbador, na relação entre aqueles dois.
Passado tenebroso
Por volta dos vinte minutos, ficamos sabendo que Narvel foi membro de uma milícia supremacista de ideologia nazista. Esse fato é revelado de modo abrupto – e essencialmente cinematográfico – por volta dos vinte minutos de projeção, quando o protagonista se despe, revelando em seu dorso a inscrição White pride (orgulho branco), além de suásticas e outros signos tenebrosos.
Flashes desse passado ignóbil emergem ao longo do filme em lembranças e pesadelos de Narvel, bem como em alguns diálogos talvez didáticos demais, mas o importante é que essa vida anterior está inscrita em sua pele.
Aqui, a meu ver, reside a grande força do filme de Paul Schrader: estabelecer um paralelo simbólico entre o métier do protagonista e sua trajetória pessoal. A arte de criar e manter um jardim, ordenando a vida selvagem, dá-se na confluência entre a natureza e a cultura. Analogamente, o jardineiro Narvel busca ordenar seus impulsos, domesticar seu corpo, transformar-se em algo novo, em algo bom.
Ao longo de todo o filme, a pele – e sua cor – estará no centro das atenções. O que provoca uma perturbação no arranjo entre Narvel e sua patroa, aliás um arranjo não desprovido de certa perversão, é a entrada em cena da jovem negra (mais precisamente mestiça) Maya (Quintessa Swindell), sobrinha-neta de Norma Haverhill. Ironicamente, é a própria Norma que impõe a moça como aprendiz de jardinagem de Narvel, para livrá-la das drogas e das péssimas companhias.
Inferno e redenção
A relação entre o jardineiro-chefe e a bela e problemática aprendiz atesta um certo otimismo do diretor Paul Schrader quanto à superação do ódio racial e social que infelicita a América e o mundo. Uma visão demasiado utópica, disseram alguns críticos.
Acima de tudo, é uma história de redenção, de um personagem que atravessa o inferno para sair do outro lado purificado, como em tantos outros filmes escritos por Schrader para Scorsese (Taxi driver, Touro indomável, A última tentação de Cristo) ou dirigidos por ele próprio (Hardcore, Gigolô americano, Mishima, Patty Hearst). Schrader, cabe lembrar, teve uma rígida formação calvinista e mantém sempre em seus filmes um viés nitidamente cristão. Não por acaso, sua principal referência no cinema é o jansenista francês Robert Bresson.
Nas outras obras que escreveu e/ou dirigiu, geralmente um banho de sangue, uma apoteose da violência, precede a redenção final. Em Jardim dos desejos o morticínio já aconteceu quando começa a narrativa e é mostrado em breves flashbacks, mas tem uma espécie de eco em tom menor perto do final. Como em tantos longas-metragens norte-americanos, um homem cansado de guerra é chamado a pegar em armas de novo contra a iniquidade.
Tudo somado, é um belo filme de maturidade, que perde um pouco de sua força ao explicar demais os fatos e as intenções dos personagens, mas cresce quando confia no poder de suas imagens.