“Delicioso” certamente não é uma categoria de crítica cinematográfica, mas talvez seja o adjetivo que melhor defina Licorice Pizza. Do início ao fim, o filme é uma festa para os olhos, os ouvidos e a inteligência do espectador. Fazia tempo que o diretor Paul Thomas Anderson não encontrava essa leveza de toque, hoje tão rara no cinema mundial.
A primeira sequência de certa forma define o tom do que virá em seguida. Na fila para tirar uma foto para sua carteirinha de colégio, o garoto Gary Valentine (Cooper Hoffman), de 15 anos, flerta com uma funcionária da empresa que oferece o serviço, Alana (Alana Haim), dez anos mais velha. A acintosa autoconfiança do garoto contrasta com a hesitação da moça. Aos poucos, a atitude dúbia dela se revelará uma espécie de coragem radical, de disponibilidade plena ao que vier pela frente. Na canção “July Tree”, Nina Simone anuncia: “O amor verdadeiro floresce para o mundo ver”. Será, veremos, um filme de amor e humor.
Seguem-se os encontros e desencontros dessa dupla improvável ao longo das mais variadas situações. Esse “romance de iniciação” parece se filiar, em princípio, a obras de nostalgia juvenil como Loucuras de verão (George Lucas, 1973) e Picardias estudantis (Amy Heckerling, 1982), referências confessas do diretor, mas com uma diferença importante: ambientado em 1973, Licorice Pizza traz ao primeiro plano a crise do petróleo desencadeada naquele ano por uma revolta dos países produtores do Oriente Médio.
Apocalipse e mudança
Com a súbita escassez de gasolina, a América literalmente para, gerando um clima ao mesmo tempo apocalíptico e aberto a novas possibilidades. A grande sacada de Paul Thomas Anderson, a meu ver, foi articular a condição adolescente – em que todos os horizontes parecem abertos – a essa atmosfera de um mundo em estado de espanto e redefinição.
A sequência que melhor captura esse duplo momento, pessoal e coletivo, é aquela em que os protagonistas correm a pé por ruas lotadas de carros parados. Num posto de gasolina, um cartaz diz: “Não temos combustível. Alugue uma bicicleta”. Na trilha musical, David Bowie pergunta: “Existe vida em Marte?”
Aquilo que, para o mundo “adulto”, parece um drama sem saída tem para os adolescentes um ar de aventura e descoberta. Veículos automotores, aliás, signo tão central da vida norte-americana, são protagonistas de algumas das cenas mais inspiradas do filme: filas imensas de automóveis parados, um caminhão descendo uma ladeira em marcha-a-ré, uma Ferrari despedaçada a golpes de barra de ferro, uma motocicleta saltando uma fogueira...
As referências à cultura urbana da época e ao cinema hollywoodiano se sucedem em ritmo vertiginoso. Alguns poucos exemplos: a apresentadora do programa de TV em que Gary Valentine se apresenta, Lucy Doolittle (Christine Ebersole), alude à atriz Lucille Ball e a sua série Here’s Lucy (1968-74). O ator veterano Jack Holden (Sean Penn) remete ao astro William Holden. O diálogo que ele ensaia com Alana no teste dela para o elenco de um filme foi tirado de Interlúdio de amor (Breezy, 1974), de Clint Eastwood, estrelado por Holden. O diretor Rex Blau, vivido por Tom Waits, é uma mistura de Sam Peckinpah e Mark Robson, e há diálogos tirados de As pontes de Toko-Ri (1954), dirigido por Robson e protagonizado por Holden e Grace Kelly.
Algumas alusões são tão intrincadas que se tornam quase piadas internas: o produtor Jon Peters (Bradley Cooper), que aparece como “namorado de Barbra Streisand”, produziu em 1976 o drama musical Nasce uma estrela, protagonizado por ela. E Bradley Cooper, que o interpreta, dirigiu um remake do filme em 2018, com Lady Gaga no papel principal.
Mais consequentes são as brincadeiras que cruzam o enredo do filme com os acontecimentos da época. No momento em que o presidente Richard Nixon fala na TV sobre a crise do petróleo, Gary Valentine vê no jornal um anúncio do filme pornográfico Garganta profunda. Como se sabe, “Garganta Profunda” era o codinome do informante que revelou a jornalistas o escândalo Watergate, que derrubaria Nixon em 1974.
Imersão cultural
Essas referências histórico-cinéfilas cruzadas enriquecem o filme, mas não são imprescindíveis para a sua fruição. Mais vale deixar-se levar pela extrema desenvoltura com que Paul Thomas Anderson conduz o público de um episódio a outro, em situações sempre imprevisíveis e com desfechos surpreendentes.
Colchões d’água, fliperamas, restaurantes japoneses (então uma novidade nos EUA), cinemas de rua, sob uma trilha sonora que vai de Chuck Berry a Sonny & Cher, de Paul McCartney a The Doors, tudo isso propicia uma imersão na cultura cotidiana da época, reforçada pela textura da imagem captada em película, procedimento raro no cinema de hoje.
Sutileza nas cenas de amor: duas mãos que se aproximam, vistas de baixo através de um colchão d’água transparente; duas pernas que quase se roçam embaixo da mesa; uma conversa telefônica em que só se ouve a respiração do outro lado da linha. Contundência nas cenas de humor: uma mulher na garupa de uma moto, a moto arranca e sai de quadro, a mulher se estatela de costas no chão, como num filme de Buster Keaton.
Amor e humor indissociáveis na sequência em que os amantes correm um em direção ao outro, numa paródia de cena romântica clássica, e ao se encontrarem mais se trombam do que se abraçam, saindo também de quadro, sob os olhos espantados de uma bilheteira de cinema.
Nada disso teria efeito se não fosse a feliz escolha dos protagonistas, ambos estreantes em longa-metragem. Cooper Hoffman é filho de Philip Seymour Hoffman (1967-2014), ator favorito de Paul Thomas Anderson e um de seus grandes amigos. (O cineasta disse que havia “dirigido” o pequeno Cooper em inúmeros filmes domésticos.) Alana Haim, por sua vez, é cantora, compositora e instrumentista da banda de pop-rock Haim, junto com suas duas irmãs mais velhas. A família da personagem, no filme, é de fato a família da atriz na “vida real”.
Para quem se pergunta de onde vem o título: licorice pizza (pizza de alcaçuz) era a gíria americana para os LPs de vinil (como “bolachão”, no Brasil) e acabou batizando uma rede de lojas de discos. Nesse título está contida toda uma sinestesia entre visão, audição e paladar.
Geraldo Sarno
A covid-19 levou no último dia 22 mais um grande artista brasileiro, o cineasta baiano Geraldo Sarno (1938-2022), interrompendo uma rica produção que começou com o documentário Viramundo (1965) e se encerrou com o extraordinário Sertânia (2019), que comentei há um ano.
O tema essencial de Sarno, abordado sempre com integridade e paixão, era o sertão nordestino: a terra, o homem, a luta, como no clássico de Euclides da Cunha. Sertânia, verdadeiro compêndio desse universo, está disponível para compra ou aluguel no Youtube. E na televisão o canal Curta! exibe a série documental “A linguagem do cinema”, sobre filmes brasileiros marcantes, dirigida e apresentada por Sarno.