De 27 de setembro a 3 de outubro, acontece uma retrospectiva do maliano Souleymane Cissé no cinema do IMS Rio. Nascido em 1940 e formado em cinema na União Soviética, o cineasta começou a fazer filmes nos anos 1970, com obras que abordam de embates políticos a mitologias locais em seu país. Após a exibição de Yeelen ‒ A luz no dia 27 de setembro, quinta-feira, às 19h, haverá um debate com a pesquisadora Janaína Oliveira. A mostra passou pelo cinema do IMS Paulista entre 18 e 25 de julho.
Quando Souleymane Cissé terminou seus estudos de cinema no Instituto VGKI, em Moscou, em 1969, haviam se passado apenas três anos do lançamento de A garota negra (La noire de...), filme de Ousmane Sembène que é considerado o primeiro longa-metragem feito por um realizador negro africano. No ano seguinte, Cissé retornou para o Mali, sua terra natal, dando início efetivamente ao trabalho com cinema, primeiramente como operador de câmera e repórter, realizando filmes no interior do país para o Serviço Cinematográfico do Ministério de Informação, para depois ingressar na carreira de cineasta e, posteriormente, de produtor, ao fundar, em 1977, a companhia Les Films Cissé (Sisé Filimu).
A experiência cinematográfica do diretor maliano está intrínsecamente ligada às diretrizes que caracterizam as primeiras décadas do cinema africano, isto é, um cinema feito por africanos, com temas africanos, para um público africano, tal como definido por Manthia Diawara, professor e estudioso, conterrâneo de Cissé e um dos maiores especialistas nas cinematografias do continente. Da mesma forma que se observa na obra de Sembène, a prerrogativa central de Cissé era criar um repertório de imagens e histórias que se contrapusessem ao universo de representações negativas sobre o continente que tradicionalmente povoam o repertório das imagens eurocêntricas. “Os que vieram filmar aqui jamais mostraram as pessoas como seres humanos. Eles nos filmaram de qualquer maneira [...]. O cinema dos brancos mostra que os africanos não pertencem à comunidade humana, que são como animais. Filmaram rios com mais respeito!”, afirmou Cissé, de maneira contundente, em 1991, na entrevista para o episódio dedicado a ele da série documental Cinéastes de notre temps, do diretor cambojano Rithy Panh, filme que também integra a mostra do IMS. Exibir as injustiças e as mentiras que as imagens produzidas sob a égide do olhar do colonizador, que durante décadas perpetuaram estereótipos negativos e estanques sobre as culturas africanas, tal era a tarefa dos cineastas dessa geração.
Em entrevistas diversas, concedidas em diferentes momentos de sua carreira, Cissé aponta o contexto da luta contra a dominação colonial como origem central de seu desejo de se tornar cineasta. Ainda que seja uma paixão desde a infância, o momento exato em que Cissé diz ter optado por fazer do cinema seu métier foi quando assistiu a um documentário sobre a prisão de Patrice Lumumba, líder político que promoveu a luta de independência do Congo, em 1960. A violência das imagens de Lumumba amarrado, a forma como foi brutalmente tratado, seria determinante para o então jovem estudante decidir fazer do cinema uma arma contra as forças coloniais que, mesmo após as independências, se faziam presentes nas relações políticas, econômicas e, sobretudo, culturais. A descolonização das telas, expressão usada pelo crítico tunisiano Tahar Cheriaa, fundador da Jornada Cinematográfica de Cartago, que, junto com Sembène, protagoniza a articulação política desse primeiro momento do cinema africano, é assumida por Cissé como missão. Daí seus primeiros filmes serem reconhecidos como políticos e, por vezes, até pedagógicos.
Na mostra inédita que agora o IMS traz para o Brasil, estão presentes alguns desses filmes, mais precisamente dois curtas-metragens, Fontes de inspiração (Sources d'inspiration), de 1968, e Cantores tradicionais das ilhas Seychelles (Chanteurs traditionnels des îles Seychelles), de 1975, juntamente com dois de seus longas-metragens mais consagrados, Baara ‒ O trabalho, de 1978, e Finyé ‒ O vento, de 1982. Baara, segundo longa-metragem do diretor, ganhou o prêmio de Melhor Filme da edição de 1979 do Fespaco (Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou), em Burkina Fasso, maior festival do continente e o segundo mais antigo (criada em 1966, a Jornada Cinematográfica de Cartago é a precursora dos festivais africanos. O Fespaco foi criado em 1969, então com o nome de Semana de Filmes de Ouagadougou). Proeza repetida em 1983 com Finyé, fato até então inédito na história do festival, e repetido apenas recentemente, em 2017, pelo diretor senegalês Alain Gomis, que se tornou o segundo diretor a ganhar por duas vezes o Étalon de Yennenga, nome do prêmio principal do Fespaco.
Com Yeelen ‒ A luz, terceiro longa do diretor presente na Mostra do IMS Paulista, Cissé apresenta um novo caminho narrativo, que, segundo críticos e comentadores do cinema africano, o afastaram das narrativas sociais realistas ao estilo sembèniano. O filme se desenvolve no universo dos rituais Komo, pertencentes a um código cultural específico da cultura maliana, trazendo para as telas do cinema africano outra abordagem do tempo e do espaço em relação às tradições locais. Yeelen inaugura uma série de produções com longos planos e som natural, com closes que enaltecem a beleza dos personagens e suas tradições, sobretudo no período anterior à chegada dos colonizadores europeus. Esse estilo narrativo, que Diawara chama de “retorno às origens”, vai caracterizar as obras da segunda geração de cineastas africanos, como nos filmes dos burquinenses Gaston Kaboré e Idrissa Ouédraogo. Contudo, uma crítica recorrente a essa geração é que, ao se afastar da crítica política e social, os filmes se tornariam mais próximos ao gosto das plateias ocidentais. Fato é que Yeelen ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, em 1987, feito também até então inédito na história do cinema africano, dando a Cissé o reconhecimento fora do continente africano.
“Se Yeelen é diferente de Finyé e Baara”, diz Cissé em entrevista a Frank Ukadike em 1997, durante o Fespaco, “pode ser porque, acima de tudo, diferentes impulsos dirigem cada criação. A mudança de estilo pode ser deliberada. Depois que fiz Finyé e Baara, eu fui rotulado de cineasta político, e alguns diziam que meus filmes eram muito didáticos. Mas um artista deve ter a liberdade de experimentar com tema, conteúdo e estratégia narrativa.” A fala do diretor, três décadas após o seu début como cineasta, revela também a transição de sua cinematografia, que dialoga com diferentes momentos da produção de filmes na África. “Cada filme meu é uma longa viagem”, afirmou certa vez o cineasta. É por isso que, além da qualidade incontestável dos filmes, acompanhar o desenvolvimento do trabalho de Souleymane Cissé nessa mostra é, também, uma oportunidade singular de viajar através da história e perceber as transformações que marcaram parte fundamental da trajetória das cinematografias africanas.
- Janaína Oliveira é pesquisadora e curadora, doutora em história, professora no IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro). É curadora do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul (RJ) e do Fincar (Festival Internacional de Cinema de Realizadoras), no Recife. É idealizadora e coordenadora do Ficine.