Um dos filmes mais originais e interessantes da nova safra brasileira está em cartaz na Netflix. Estou falando de Madalena, do estreante em longas Madiano Marcheti, que trata do assassinato de uma mulher trans no interior do Brasil.
Talvez não seja correto dizer que Madalena (Chloe Milan) é a protagonista do filme que leva seu nome. Quando começa a história ela já está morta ou, para todos os efeitos, desaparecida. Em torno dessa figura ausente somos levados a observar fragmentos do seu entorno social – em última análise, do mundo que a eliminou.
Esse mundo é o da moderna monocultura de soja, no Mato Grosso do Sul. Ao redor da cidade de Dourados, o que se vê é uma vastidão verde, plana, de horizonte a horizonte. O formato panorâmico da tela (2.35:1) acentua a “vertigem horizontal”, para usar a expressão com que o escritor francês Drieu La Rochelle definiu o pampa argentino, quando viajou por lá na companhia de Borges.
A paisagem, como veremos, terá um papel decisivo nessa narrativa, que se estrutura em três partes, cada uma delas conduzida por um personagem que teve alguma relação com a Madalena desaparecida: Luziane (Natalia Mazarim), recepcionista de um clube noturno e dançarina nas horas vagas; Cristiano (Rafael de Bona), filho e herdeiro de um grande fazendeiro da região e de uma candidata a senadora; e Bianca (Pamella Yule), travesti de classe média baixa e talvez a amiga mais próxima de Madalena.
Ao contrário do que se poderia esperar, o filme não se concentra na investigação do desaparecimento, ou no desvendamento do mistério (o whodunit, ou “quem matou?”). O tema só aflora lateralmente, e quase diluído na série de crimes semelhantes ocorridos na região. A própria Madalena surge fugazmente numa pista de dança ou no campo de soja, não em flashbacks, mas como aparição fantasmática.
Construção lacunar
Na construção lacunar da narrativa, o diretor e seus roteiristas vão dispondo sem ênfase, como quem não quer nada, os elementos que compõem o opressivo e desolado contexto social, cultural e moral que propicia ao mesmo tempo os crimes e seu silenciamento: o poder do agronegócio, a falta de perspectivas dos jovens que não são herdeiros, o culto narcísico e hedonista dos que o são.
Um mundo de SUVs e caminhonetes de cabine dupla, de cigarros eletrônicos e injeções de anabolizantes, de música sertaneja onipresente, de alta tecnologia e pouco trabalho braçal na lavoura. Nada disso é expresso no discurso verbal, e sim nas imagens e na trilha sonora (e mais no rádio que nos diálogos).
Máquinas ultramodernas percorrem a imensidão verde como gigantescos gafanhotos metálicos, sob o leve zumbido de uma revoada de drones. À noite um grupo de rapazes empina suas motos numa avenida deserta de periferia. A certa altura, formam um círculo estreito, apontando suas motos para um centro, quase encostando umas nas outras e acelerando sem sair do lugar, como se fosse uma disputa de barulho e potência das máquinas. A fumaça vai aumentando em torno das luzes dos faróis até criar um ambiente fantástico, demoníaco.
Em outro momento, na gravação de um clipe ou comercial, garotas dançam sincronizadamente no meio da plantação de soja ao som de uma dupla sertaneja que canta no alto de uma máquina rural futurista. Parece um outro planeta.
As imagens iniciais são eloquentes. Vemos uma mata fechada e exuberante, cortada por um córrego sereno, ouvimos pássaros e cigarras. Dir-se-ia que estamos numa floresta tropical. Mas já o plano seguinte mostra que se trata de uma ilhota de natureza selvagem no meio dos campos de soja. No mar uniforme da plantação desponta uma ema, depois outra e mais outra, perscrutando as máquinas que se movimentam ao longe. O primeiro corpo humano que aparece é um cadáver. Madalena? Não sabemos.
Reserva natural e humana
O oásis de vida natural reaparecerá ao final como abrigo para a liberdade e o afeto entre três amigas em meio a um mundo hostil. Uma reserva de humanidade contra a barbárie mecanizada. Um último letreiro informa que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans.
Tudo se encaixa, embora o filme tenha parecido desconexo ou descosturado a alguns críticos. Mas o que eles viram como defeito talvez seja uma virtude da obra: enfrentar seu tema pelas bordas, de modo elusivo e fragmentário, para que o espectador se veja instado a tatear por conta própria seu caminho nesse terreno desconhecido e movediço que atende pelo nome de Brasil profundo.
Valentina
Coincidência ou não, está na Netflix outra boa produção brasileira recente protagonizada por uma garota trans: Valentina, do também estreante em longas Cássio Pereira dos Santos.
Com uma narrativa mais clássica e uma dramaturgia mais convencional – mas não menos efetiva e envolvente –, o filme ganhou em 2020 vários prêmios na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo ao narrar a história de uma adolescente (a ótima Thiessa Woinbackk, premiada em vários festivais) que se muda com a mãe para uma cidade do interior de Minas fugindo do preconceito e da hostilidade do lugar onde vivia.
problema é que a nova escola exige, para a matrícula com o nome social, a autorização assinada por ambos os pais. Enquanto a mãe (Guta Stresser) tenta resolver esse imbróglio, Valentina, em plena fase de crescimento e descobertas, procura se ambientar no novo contexto.
Ao contrário de Madalena, em que a personagem-título é quase um pretexto para tratar do seu entorno, aqui o movimento narrativo é centrípeto, aprofundando-se cada vez mais nos medos, alegrias e afetos dessa menina que oscila entre a fragilidade e a força ao lidar com uma realidade adversa.
São dois filmes curiosamente complementares. Ainda dentro do tema, há uma terceira produção brasileira recente que vale a pena ver, o documentário Transversais, de Émerson Maranhão, que entrecruza histórias de homens e mulheres transgênero de várias idades e classes sociais em cidades do interior cearense. Está em cartaz nos cinemas de algumas capitais.