Impossível não falar de Mank, que está cotado para o Oscar e vem sendo apontado como “imperdível para os cinéfilos”. Lançado pela Netflix e dirigido por David Fincher (de Seven, Clube da luta e A rede social), o filme é centrado no talentoso e problemático Herman Mankiewicz (Gary Oldman), o roteirista de Cidadão Kane e de dezenas de outras produções hollywoodianas.
Alcoólatra, sarcástico, falastrão, Mankiewicz teve uma relação conturbada com a indústria do cinema e seus mandachuvas. O presente narrativo de Mank é o período em que o escritor, isolado num rancho, com a perna engessada, escreve o roteiro de Kane. Sucessivos flashbacks situam o protagonista no contexto de Hollywood e da história social e política da década de 1930 (Grande Depressão, polarização entre fascismo e comunismo, relações promíscuas entre cinema, imprensa e políticos).
Com uma esmerada reconstituição de época e uma estilosa fotografia em preto e branco, o filme se divide, grosso modo, em três partes. A primeira é “enciclopédica”, verborrágica e um tanto enfadonha, com uma profusão de personagens históricos da Hollywood da época apresentados em diálogos velozes, lapidares, como se cada um tivesse que marcar presença dizendo algo espirituoso ou significativo.
O espectador não enfronhado na história dos estúdios sente falta de notas de pé de página para não se perder naquele palavreado todo, cheio de referências e piadas internas, em que comparecem figuras que nada têm a ver com o drama central, a saber: por um lado, a relação ambígua de Mankiewicz com o magnata da imprensa William Randolph Hearst (Charles Dance) e sua amante, a atriz Marion Davies (Amanda Seyfried); por outro, seu embate criativo/profissional com Orson Welles (Tom Burke).
Como se sabe, Hearst foi o modelo em que Mankiewicz e Welles se basearam para criar seu Charles Foster Kane, e o olhar que a obra-prima de Welles lança ao personagem e sua amante não é nada abonador para nenhum dos dois. A “traição” ensejaria uma guerra sem precedentes do poderoso Hearst contra o filme e seus autores, abalando a carreira de ambos.
Contexto político
A segunda terça parte de Mank amplia o contexto político. Ao abordar a campanha à eleição para governador da Califórnia, em que o escritor socialista Upton Sinclair foi derrotado pelo republicano Frank Merriam, David Fincher coloca em cena os grandes confrontos político-ideológicos da década de 1930, em que regimes de extrema-direita rugiam na Europa a pretexto de combater o comunismo soviético. Ao mesmo tempo afloram as relações umbilicais entre os grandes estúdios e os políticos conservadores, com direito até a cinejornais mentirosos, a forma da época de criar e veicular fake news.
Num filme povoado por tantos personagens reais, é interessante que um dos mais comoventes seja fictício: o diretor encostado Shelly Metcalf (Jamie McShane), que aceita fazer um desses noticiários falsos para não ficar sem trabalho e depois se martiriza achando que Sinclair perdeu a eleição por sua culpa.
Em seu último terço, enfim, Mank se livra da preocupação informativa e encena os conflitos que de fato contam, do ponto de vista dramático: de Mank com Hearst (e, por extensão, com seu capacho Louis B. Mayer e com sua amante Marion Davies) e de Mank com Welles.
Uma das melhores cenas é aquela em que o então garoto-prodígio se enfurece com o roteirista e passa a destruir as coisas ao seu redor. Imperturbável em sua ironia e sarcasmo, Mankiewicz começa a escrever imediatamente uma cena de fúria de Charles Foster Kane – uma indicação de que seu megalômano e egocêntrico protagonista não se inspirava apenas em Hearst, mas também no próprio Welles. Não tão feliz é a tentativa de mimetizar certas situações e imagens de Kane na própria fatura de Mank, como fica evidente no recurso ao contre-plongée (tomadas de baixo para cima) e à iluminação ocasionalmente expressionista.
Quem é o autor
Quanto à discussão sobre a “verdadeira autoria” de Cidadão Kane, iniciada com um controverso ensaio da crítica Pauline Kael na revista New Yorker em 1971, trata-se em grande parte de uma falsa questão. Um filme não se resume a seu roteiro. Kane não existiria sem Mankiewicz, é certo, mas tampouco seria o que é se o diretor fosse outro que não Orson Welles. Para quem quiser se aprofundar no tema há dois livros essenciais, ambos disponíveis no Brasil: Criando Kane e outros ensaios, de Pauline Kael (Editora Record, tradução de Marcos Santarrita), e Cidadão Kane: o making of, de Robert L. Carringer (Civilização Brasileira, tradução de Ana Luiza Dantas Borges), que é uma espécie de resposta ao argumento de Kael.
Sobre o contexto hollywoodiano do período, dois outros livros são guias úteis e agradáveis: A cidade das redes – Hollywood nos anos 40, de Otto Friedrich (Companhia das Letras, tradução de Angela Melim), e O gênio do sistema – a era dos estúdios em Hollywood, de Thomas Schatz (Companhia das Letras, tradução de Marcelo Dias Almada). Eles suprem boa parte das notas explicativas que Mank demandaria.
Faltou dizer que Gary Oldman está espetacular como quase sempre e que o elenco, de um modo geral, se sai muito bem.
Invasão russa
Como dizia o título de uma comédia maluca dos tempos da Guerra Fria, os russos estão chegando. E atacam em duas frentes. Começa hoje (10 de dezembro), com exibição gratuita na plataforma Spcine Play, o 1º Festival de Cinema Russo, com apoio do Ministério da Cultura da Rússia. Na programação, oito filmes produzidos nos últimos quatro anos. Ao mesmo tempo, está em cartaz até o próximo domingo (13 de dezembro) a 7ª Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo, exibida gratuitamente no canal do CPC da UMES (União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo) no YouTube.
As duas mostras se complementam. Se a da Mosfilm (estúdio fundado na ex-URSS em 1920) traz clássicos arrebatadores como Tempestade sobre a Ásia (Pudovkin, 1928), A infância de Ivan (Tarkovsky, 1962) e Moscou não acredita em lágrimas (Vladimir Menshov, 1979), o Festival de Cinema Russo comprova a persistente vitalidade dessa cinematografia centenária.
Todos os filmes programados são no mínimo bons, mas dois se destacam em particular: o suspense O texto (Klim Shipenko, 2019), e o drama Arritmia (Boris Khlebnikov, 2017). No primeiro, um estudante de literatura vai parar na cadeia por culpa de um policial corrupto que “planta” drogas em seu bolso. Depois de sete anos atrás das grades, o rapaz mata seu algoz e fica com o celular deste, passando a viver de modo vicário, virtualmente, suas relações (com a família, a namorada, o trabalho, o tráfico). De construção cerrada e tensa, repleta de surpresas, é um filme eletrizante.
Eletrizante também, mas por outros motivos, Arritmia acompanha o inferno cotidiano de um paramédico numa metrópole russa. A barra pesada do dia a dia (excesso de doentes, falta de recursos, chefes insensíveis) o leva a beber compulsivamente, o que traz problemas no trabalho e nos relacionamentos, realimentando o círculo vicioso. Lembra um pouco Vivendo no limite, de Martin Scorsese, em sua espiral de loucura.
Bolshoi (Valery Todorovsky, 2016) é o drama de uma talentosa bailarina adolescente do interior às voltas com a disciplina rígida e a competição acirrada na academia de balé mais famosa do planeta. Aqui, o mérito maior está em equilibrar a descrição minuciosa do contexto sócio-cultural e o desenvolvimento da personalidade da protagonista.
Indivíduo e circunstância
O mesmo equilíbrio entre personagem e entorno, entre atividade profissional e aspiração íntima, aparece em O coração do mundo (Natalia Meshchaninova, 2018), centrado num jovem veterinário que trabalha numa fazenda de criação e treinamento de cães de caça.
Observada em conjunto, a cinematografia russa – pelo menos a que chega até nós – tem esse traço em comum: os dramas humanos não se desenvolvem em abstrato, em apartamentos chiques de telenovela ou cenários de videoclipe, e sim dentro de condições sociais e profissionais muito objetivas. Moscou pode acreditar em lágrimas, mas não em mimimi.