O canto do mar (1953), de Alberto Cavalcanti, é o filme de janeiro da Sessão Cinética, exibição seguida de debate que acontece no IMS Rio no dia 18/1, às 18h50, e no IMS Paulista em 31/1, às 19h30.
“Premiado em Karlovy-Vary, o filme interessou ao público europeu; de um ponto de vista formativo para o cinema brasileiro, é um destes enganos que devem ser estudados a fim de que não se repitam.” O diagnóstico cruel de Glauber Rocha em relação a O canto do mar (1953), registrado na Revisão crítica do cinema brasileiro e publicado pela primeira vez em 1963, colaborou para certo apagamento do filme de Alberto Cavalcanti na historiografia mais séria e relevante do cinema brasileiro. A virulência de Glauber surgia como intervenção política à produção industrial radicada em São Paulo e baseada na importação de profissionais estrangeiros e em modelos narrativos de Hollywood. A estrutura mastodôntica dos grandes estúdios surgidos a partir da fundação da Vera Cruz em 1949 seria rapidamente desmontada por ambições econômicas hiperbólicas, mas, para o então crítico e futuro cineasta baiano, O canto do mar era representante do olhar de um realizador que, “evidentemente interessado num filme que exprimisse o complexo nacional daquela região [Recife]”, acabava por “indisciplinadamente” se encantar pelo exotismo terceiro-mundista. Isso estaria explicitado não apenas nas escolhas narrativas, mas especialmente no tratamento visual, que, para Glauber, sofria do “grave erro da estetização do social, do elogio das grandezas da miséria”.
As palavras de Glauber reverberaram por décadas e colaboraram para O canto do mar ficar relegado a cantos de página ou a referências em meio a análises mais amplas sobre a produção industrial do país, muitas vezes sendo apenas relacionado à ascensão e queda dos estúdios paulistas (Vera Cruz, Maristela, Multifilmes, Sacra e Kino) ao longo dos anos 1950. Francisco Luiz de Almeida Salles foi dos poucos críticos de cinema a olhar para o filme, à época, como uma pequena epopeia poética, de “sentido sinfônico”, que retratava um país “pobre e triste, ingênuo e patético, Brasil de beira de cais”. Em 1966, Paulo Emílio Sales Gomes fez uma breve e favorável citação ao trabalho de Cavalcanti no ensaio “Panorama do cinema brasileiro: 1896- 1966”, anotando que o cineasta, “patrício que se ilustrara no cinema francês e inglês”, fizera de O canto do mar e de Simão, o caolho (outro de seus longas-metragens brasileiros, lançado em 1952) “trabalhos que não comprometem a sua filmografia e enriquecem a nossa”.
O canto do mar, único filme dramático dirigido por Cavalcanti no Brasil, chega-nos, no século XXI, carregado com a maldição de ser um projeto “academizante” que armou terreno e potencializou a reação explosiva do Cinema Novo na década seguinte. Mas, assim como retrata um espaço de transição entre o sertão nordestino castigado pela seca e a promessa de uma vida de mais oportunidades no sul do Brasil (São Paulo, especialmente), o filme de Alberto Cavalcanti também se localiza historicamente numa espécie de fronteira. Apesar de ser uma refilmagem (de En rade, realizado pelo próprio Cavalcanti na França em 1927), utiliza elementos do neorrealismo italiano (com fortíssimas semelhanças com A terra treme, de Luchino Visconti, de 1948, como apontou a pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo num texto de 2005 para a revista Contracampo), ao mesmo tempo que desenvolve os vários núcleos narrativos com uma rigidez de mise en scène que involuntariamente denota seu artifício. Se filma em locações (a região portuária do Recife), Cavalcanti mantém resquícios das experiências em estúdio, principalmente na utilização exacerbada da trilha sonora incidental de Guerra-Peixe e num certo “luxo” dos figurinos e maquiagens do elenco. Entre o acadêmico e o espontâneo, o neorrealismo e o controle de estúdio, a representação de uma suposta fatia da realidade e o artificialismo dos meios cinematográficos mais tradicionais, O canto do mar mostra-se, hoje, como exemplar típico de um cinema brasileiro em franco movimento de alteração de status quo, no caminho de uma revolução que se anunciava logo à frente, mas que não conseguiria avançar contra os combatentes adversários se não passasse pelo campo minado.
Cavalcanti, possivelmente traumatizado pela debacle da Vera Cruz e da Multifilmes (nas quais ele teve importância fundamental desde o princípio), assumiu para O canto do mar outra forma de fazer cinema. Não exatamente novidade a ele mesmo – vindo de bem-sucedida trajetória na Europa, onde trabalhou com a vanguarda experimental francesa nos anos 1920 e com documentários ingleses ao lado de John Grierson nos 1940 –, aplicando elementos de suas obras pregressas na abordagem social e política de um Nordeste de pobreza idealizada. O prólogo de O canto do mar aponta o determinismo imposto aos personagens: sob um mapa do Brasil desenhado na tela, a imagem se aproxima das curvas referentes ao estado de Pernambuco e se transfigura, por fusão, no chão batido e seco do sertão. A voz em off repete insistentemente “Não chove”, enquanto a narração acompanha a saída de uma família para o litoral, na ânsia pela embarcação que a levará a São Paulo.
Curiosamente, o filme não se fixa nessa família, mas em outra, já residente na área portuária palco do enredo. Dividindo-se nas desventuras de quatro pessoas (mãe, pai, filho e filha), todas desestruturadas pela pobreza, pela fome, pela doença e pela desesperança, O canto do mar opera a partir da utopia de uma vida digna e na tentativa dos personagens jovens de não repetirem o ciclo de miséria e loucura dos pais. O “canto do mar” proposto pelo filme tem, assim, dupla acepção. Num sentido geográfico, é o espaço que se localiza à margem de um centro, ocupado por uma gente deixada de lado que precisa se movimentar para escapar em direção à outra ponta. Num sentido poético, é a música das águas, que aciona, tal como o canto da sereia, a sedução do indivíduo litorâneo pelas maravilhas de um novo mundo e de uma vida longe dali.
A renovação desejada pelos jovens protagonistas será impossibilitada pela matriarca conservadora e resignada (interpretada pela excelente Margarida Cardoso), que, ao seu modo, manipula a todos para que cada um permaneça nos lugares em que as circunstâncias lhes impuseram. Ela é a manifestação dramática do determinismo adiantado pelo mapa de Pernambuco incrustado na terra batida, conforme mostrado no prólogo. Essa mulher – cujo marido enlouqueceu, o filho mais novo morreu, a filha quer se prostituir e o primogênito ameaça ir embora na calada da noite – é a imagem do fracasso de um país, é a representação de que nem a utopia pode salvar e de que avistar o horizonte para além do “canto do mar” não é algo que deva ser estimulado. Se refletirmos a posição histórica do filme de Cavalcanti na cronologia do cinema brasileiro, tem-se a selvagem ironia de uma personagem que surge como o superego às ambições mais liberais do diretor no trato com o material audiovisual que tinha em mãos. O breque do status quo se fazia presente por dentro da narrativa do filme. Entre a apresentação do nervo narrativo a acionar personagens que não conseguem escapar do que os prende (metaforizados, um tanto rusticamente, pelos pássaros engaiolados na casa da jovem atendente da mercearia, que os liberta tão logo ela mesma consegue ir embora) e o desfecho desesperançado, Alberto Cavalcanti põe à prova duas de suas vocações estéticas. A primeira é a de documentarista. Além do prólogo (de caráter mais sociológico e didático), o filme contém cenas no miolo que, deslocadas das ações principais, funcionam de respiro à estrutura rígida de encenação. São registros de manifestações identificadas ao imaginário popular e religioso do Recife, como o frevo, o maracatu, o bumba meu boi, a cantoria e o xangô. Há um descompasso entre o documentarismo de Cavalcanti e a tentativa de uma ficção de apreensão rápida. A incursão dos personagens aos ambientes documentados tornam-se pretextos do diretor para usar a câmera na captação de imagens e sons que, se não se integram totalmente à dramaturgia (“Para isso, será necessário esperar uns dez anos por Barravento [Glauber Rocha, 1961]”, anota Luciana Corrêa Araújo na Contracampo), guardam um fascinante sentido de performance e de evocação de ritos e mitos caros ao ambiente apresentado.
Na outra ponta das vocações de Cavalcanti, aparece uma longa sequência de sonho, quase nunca citada por quem se dispôs a escrever sobre O canto do mar. O adolescente que quer ir embora do Recife dorme e é acometido por uma série de manifestações inconscientes representativas de suas inquietações. Numa montagem bem mais livre, simbólica e associativa, Cavalcanti insere, em chaves variáveis de interpretação, praticamente todo o referencial dramático desenvolvido no enredo. O filme, ali, mescla a individualidade do protagonista com o desejo coletivo de escape. Entre ecos do surrealismo de Luis Buñuel e do experimentalismo de Marcel L’Herbier (com quem trabalhara na França), o cineasta desloca o pretenso senso de realismo social que domina o filme quase por inteiro para as incongruências típicas de uma mente perturbada, pressionando a forma convencional adotada na narrativa para caminhos imprevisíveis de percepção.
O sentido limítrofe de O canto do mar encontra nestas duas abordagens – a documental, espalhada pelo filme, e a onírica, concentrada na sequência do pesadelo – seus pontos mais intensos, fazendo deste trabalho de Alberto Cavalcanti um objeto de inegável valor histórico e estético. Se afastadas as agendas do período (compreensíveis, ainda que por vezes exageradas) que o atacavam como mantenedor de um cinema industrial, empolado e de influências estrangeiras, o filme pode ser visto sob novas luzes, para enxergar um momento delicado e de grandes mudanças nos (des)caminhos da produção audiovisual brasileira – ainda hoje um tanto mal resolvidos.
Em 1974, duas décadas depois de O canto do mar, e tendo em perspectiva a realização de títulos posteriores como Rio, 40 graus (1955) e Vidas secas (1963), de Nelson Pereira Santos, O grande momento (1958), de Roberto Santos, e Barravento (1961), de Glauber Rocha, Cavalcanti fez uma provocação, em entrevista à revista chilena Écran: “Desde que deixei o Brasil [nos anos 1950], começaram a fazer filmes brasileiros como os que eu concebia. Engraçado, não é?” Na amargura e no ressentimento de um exilado artístico, o cineasta reivindicava para si alguma influência no que viria a ser a aproximação do Cinema Novo à realidade sociopolítica brasileira. Tal como Anselmo Duarte (que fez O pagador de promessas no começo dos anos 1960 acreditando se inserir no movimento capitaneado por Glauber, mas acabou afastado pelos colegas e passou a vida “culpando” a vitória da Palma de Ouro em Cannes por seu isolamento), Cavalcanti se via, talvez, como um tipo de precursor do Cinema Novo. Nas cambalhotas irônicas da história, teria ele alguma razão?
- Marcelo Miranda, jornalista e crítico de cinema, é colaborador da revista Cinética