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O chão e as estrelas

25 de agosto de 2022

Marte um, que entra em cartaz nesta quinta-feira depois de conquistar quatro prêmios importantes no festival de Gramado (do público, especial do júri, roteiro e trilha sonora), é um dos grandes filmes do ano. Seu diretor, o mineiro Gabriel Martins, atesta um notável amadurecimento em relação a seu longa anterior, No coração do mundo, que era ótimo, mas um tanto irregular e dispersivo.

Em Marte um, ao contrário, tudo se encaixa de maneira enxuta e intensa na crônica de uma família negra de classe média baixa da periferia de Belo Horizonte. Tércia (Rejane Faria), a mãe, trabalha de faxineira e cuida da casa; o pai, Wellington (Carlos Francisco), é zelador num condomínio de alto padrão; a filha mais velha, Eunice (Camilla Damião), cursa direito na universidade; o mais novo, Deivinho (Cícero Dias), é craque de bola mas quer ser astrofísico e participar de uma missão de colonização de Marte (o projeto “Marte um” do título).

 

Afeto construído

Na engenhosa construção narrativa do filme, cada um desses personagens tem a chance de se mostrar por inteiro, com todas as suas potencialidades e contradições, seu brilho e sua fragilidade. Não é uma família de comercial de margarina, em que a harmonia é um fato dado. Pelo contrário: há tensão, atrito, expectativas frustradas. Para quem vive nas bordas do nosso capitalismo selvagem, a vida não é um passeio, é luta renhida. A todo momento os membros da família se deparam com becos aparentemente sem saída, encruzilhadas difíceis, escolhas cruéis.

A começar pelas esperanças que Wellington, torcedor fanático do Cruzeiro, despeja sobre as frágeis costas do filho, que ele antevê como futebolista de sucesso. Mas o menino, tímido e introspectivo, está mais interessado na ciência, a ponto de construir com sucata um telescópio artesanal.

Tem-se falado muito sobre um “cinema dos afetos”, no qual Marte um se encaixaria perfeitamente. Mas o afeto, aqui, é algo que se constrói no tensionamento, no entrechoque de desejos, na negociação e no aprendizado. Nesse processo, nada é estático, nada é dado de antemão. Tudo somado, é um filme de amor, sob todas as suas formas: amor materno, paterno, filial, fraterno, mas também amor hétero e homoerótico, amor pelos amigos, pelo futebol, pela música. Qualquer maneira de amor vale a pena, como canta outro mineiro de pele negra.

O conflito de gerações esboçado na família acaba por revelar sutilmente transformações sociais e culturais ocorridas nas últimas décadas. Se o pai queria ver o filho como craque de futebol, é porque no seu horizonte essa era uma das poucas chances de ascensão de um garoto negro de família trabalhadora. Do mesmo modo, pai e mãe esperam que a filha arranje um marido para criar uma família nos mesmos moldes da sua. Só que ela se apaixona por outra mulher e quer sair de casa para morar com ela.

A política se infiltra de modo enviesado no cotidiano. O pai, subserviente e disciplinado no emprego e machistamente omisso nas tarefas domésticas, ouve um pouco assustado de um colega de trabalho (Russo Apr) discursos desbocados de revolta e luta de classes. E comenta: “Você está muito revolucionário. Até parece a minha filha”.

 

Futebol e amor

Uma sequência condensa de modo brilhante essas tensões. É a cena em que Eunice traz a namorada pela primeira vez a sua casa, para assistir com a família pela televisão o clássico Cruzeiro x Atlético. Todos na casa são cruzeirenses, mas Joana (Ana Hilário), a namorada, chega com a camisa do Atlético. Os pais ainda acham que ela é só amiga da filha, e tudo transcorre num clima amistoso e bem-humorado até o momento em que as duas se dão as mãos.

A câmera descreve então uma panorâmica que vai das mãos entrelaçadas aos rostos incrédulos dos pais. O choque coincide com um gol do Atlético na partida, que enseja a comemoração da namorada e uma explosão de ira do pai, já não sabemos mais se pelo futebol ou pelo namoro da filha. Das duas coisas misturadas, decerto.

A construção da cena expõe de modo exemplar o estilo narrativo do diretor, que recusa sistematicamente a fragmentação da decupagem clássica, com seu preguiçoso campo/contracampo, optando em vez disso por extrair de cada plano o máximo de informação e expressão dramática.

Os exemplos são muitos. Eunice e Deivinho conversam em seu quarto. Ela está trocando mensagens no celular. O irmão pergunta: “E essa conversa, é com o namorado?” Sorrindo enternecida diante da tela, ela o chama para ver. Deivinho olha para o celular e depois para ela, ligeiramente surpreso: “É namorada?” E ela: “Mais ou menos”. A cena se resolve numa única tomada, sem que vejamos o que há na tela do celular. Não é necessário.

Em outro momento, vemos Tércia sentada no ônibus, junto à janela. O homem a seu lado, cochilando, apoia o corpo no dela. Ela o repele com o ombro algumas vezes, mas o homem continua caindo sobre ela, até que num repelão mais forte ela o joga para fora do banco. Segue-se um alvoroço no ônibus, com as pessoas se levantando e olhando assustadas em direção ao homem caído – que nós não vemos, mas adivinhamos estar ferido ou passando mal.

Essa economia expositiva intensifica a expressão dramática, além de concentrar o foco no que interessa: os personagens, com suas infinitas nuances de emoção e de estados de espírito. Isso só é possível graças à qualidade excepcional do elenco, do estreante Cícero Lucas ao veterano Carlos Francisco (de Bacurau e No coração do mundo). No difícil e matizado papel da mãe, Rejane Faria tem uma das atuações mais memoráveis do cinema recente.

 

Sonhos possíveis

Sem descuidar do quadro histórico e social em que esses personagens se movem (significativamente, o filme começa no dia da eleição de Bolsonaro, em 2018), Marte um nos dá a ver cada um deles como um ser humano integral, senhor de seu destino dentro das margens estreitas em que está inserido. Um dia de cada vez, como diz o lema da entidade de alcoólicos anônimos frequentada por Wellington.

Uma frase recorrente do pai, diante das dificuldades, é “A gente dá um jeito”. Ao apresentar seu telescópio caseiro à família maravilhada, o garoto Deivinho diz, encabulado: “Eu vou aperfeiçoar ele ainda, mas por enquanto é o que deu pra fazer”. Esse é o espírito do filme: viver é aperfeiçoar o imperfeito. Com os pés no chão e os olhos nas estrelas.

José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Publicou, entre outros, André BretonBrasil: Anos 60 e Futebol brasileiro hoje, e participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80Folha conta 100 anos de cinema Os filmes que sonhamos. Veja textos da coluna semanal sobre cinema que assinou no Blog do IMS entre setembro de 2011 e dezembro de 2018.

MAIS

Marte Um, de Gabriel Martins, será exibido nos cinemas do IMS ao longo de outubro e novembro de 2022.