Na literatura ou no cinema, toda distopia que se preze fala do presente, exacerbando os aspectos que se quer criticar, denunciar ou transformar. Medusa, de Anita Rocha da Silveira, que está estreando nos cinemas, não foge a essa regra, mas a transcende por muitos caminhos.
A primeira sequência já diz a que veio o filme. Numa cidade não nomeada (mas facilmente reconhecível como o Rio de Janeiro), um grupo de garotas mal saídas da adolescência espanca uma moça que, instantes antes, no ônibus, assistia no celular a uma dança sensual, andrógina e um tanto monstruosa. O sensual e o monstruoso, aliás, andarão lado a lado até o final.
As garotas usam sinistras máscaras de plástico duro que lembram a do clássico do terror Olhos sem rosto (1960), de Georges Franju. Ao agredir sua vítima com socos e pontapés, elas a chamam de “devassa, prostituta, messalina”. Logo veremos as mesmas garotas sem máscaras, em postura angelical, cantando um gospel pop no templo de um jovem e carismático pastor (Thiago Fragoso). Elas são Michele (Lara Tremouroux) e as Preciosas, entre as quais o filme acompanhará mais de perto a trajetória de Mari (Mari Oliveira).
O desejo à espreita
Não convém antecipar muito do enredo, organizado em blocos narrativos muito demarcados e objetivos. Basta dizer que, além das “Preciosas”, o público do pastor conta também com os Vigilantes de Sião, uma milícia de rapazes sarados empenhados em punir os infiéis na base da porrada. “Vigiai e orai para que não entreis em tentação”, diz um cartaz onipresente nos muros. Esse é o lema que une Preciosas e Vigilantes. O desejo está sempre à espreita, é preciso sufocá-lo a todo custo.
Entre as garotas circula a história de Melissa (Bruna Linzmeyer), “a mulher mais devassa, mais pecadora de todos os tempos”, uma atriz e dançarina que “saía cada noite com um homem e chegou a fazer filmes em que aparecia nua”, antes de ter seu rosto queimado e deformado por uma desconhecida mascarada, exaltada por elas como um “anjo vingador”.
É evidente o fascínio que a figura mítica de Melissa exerce sobre as Preciosas, em especial sobre Mari e Michele. O substrato de desejo reprimido – e eventualmente convertido em violência – percorre todo o filme, manifestando-se de maneiras diversas. O narcisismo masculino evidente nos Vigilantes atinge seu ponto máximo na cena em que um deles, embevecido com seu corpo malhado, beija o próprio bíceps.
O grande mérito de Medusa é não se engessar como alegoria dessa dialética “desejo reprimido/violência”, mas deixar espaço para a ambiguidade, a ironia e a surpresa. Fissuras se abrem no fanatismo monolítico, dúvidas se insinuam, Eros cobra seus direitos.
Prosa e poesia
Chama a atenção o caráter orgânico da construção audiovisual. A iluminação é sempre expressiva, sobretudo nas cenas noturnas, dominadas o tempo todo por um jogo de cores bem definidas (o vermelho e o verde, o rosa e o azul), numa tensão cromática que de algum modo dialoga com a tensão dramática e a intensifica.
É na forma que Medusa alça seu voo. Algumas “rimas internas” situam o filme no limiar entre a prosa e a poesia. Um exemplo é o do líquido colorido que escorre no ralo de uma pia. Primeiro ele é verde, correspondendo ao creme facial usado por Mari. Depois, vermelho, do sangue de um ferimento. Por fim, amarelo, da maquiagem removida.
Outra situação recorrente, só aparentemente secundária, é a dos cartazes que se sobrepõem nos muros. Mari contempla intrigada a imagem de uma serpente que, em vez de rabo, tem uma segunda cabeça. No dia seguinte, uma frase religiosa ocupa seu lugar. Em outro cartaz, a serpente se enrosca num rosto humano. Mais uma frase religiosa a expulsa dali. Sempre a serpente, com sua carga simbólica ancestral de desejo e “pecado”.
A sobreposição de cartazes se mostra como uma guerra de discursos: o discurso ambíguo da arte, aberto a interpretações, e o discurso monolítico, unívoco, da religião. O pastor é explícito: “Não assistam à TV deles, não leiam o jornal deles. Não se deixem influenciar pelas pessoas do mundo”.
Boa parte da ironia vem da inspirada trilha sonora, que vai de uma versão gospel de “The house of the rising sun” (com o refrão “Serei bela, recatada e do lar”) a uma interpretação agressiva de “Vaca profana” na voz de Marina Senna.
Mulheres libertárias
Filme de grande riqueza de elementos e possibilidades de leitura, Medusa pode ser visto como a história de uma libertação, ou da força revolucionária do grito de uma mulher. Não deixa de ser significativo que uma nova geração de mulheres cineastas (Anita Rocha da Silveira, Beatriz Seigner, Gabriela Amaral, Juliana Rojas, Marina Meliande, etc.) esteja enveredando por distintas formas do fantástico para encarar as fraturas do mundo atual. O real é grande, mas não basta. A imaginação pode mais.
Em tempo: o nome Michele, da líder da milícia de patricinhas carolas, talvez seja mera coincidência.