Com poucas exceções, a crítica concordou em malhar Megalópolis, o novo longa-metragem de Francis Coppola. Venho me juntar às exceções.
O pior é que as “acusações” são justas: confuso, pueril, excessivo. O filme é (ou me pareceu) ocasionalmente confuso em suas conexões internas, nas referências estéticas, nas relações entre os personagens e entre estes e a cidade em que se inserem. É também pueril no discurso utópico expresso aqui e ali pelo protagonista, o cientista visionário César Catilina (Adam Driver).
Excessivo? Bem, o excesso é seu tema, sua substância, sua razão de ser. Afinal, trata-se de conectar a história de dois impérios (o antigo romano e o americano atual) que desmoronam por conta de sua hipertrofia, de sua ambição desmedida. Megalópolis incorpora em si essa condição: é desmesurado, disforme, descabido.
Espaço híbrido
A aposta formal de Coppola começa pela construção do ambiente. A Nova York onde se passa a ação mistura uma exacerbação futurista da cidade contemporânea com um pastiche da arquitetura e do urbanismo da Roma antiga.
É ali, nesse espaço híbrido entre passado e futuro, que se defrontam duas concepções de cidade e de sociedade: a do cientista Catilina e a do prefeito e ex-magistrado Cícero (Giancarlo Esposito). O primeiro, sonhador, arrogante e egocêntrico, projeta um mundo de prodígios tecnológicos que proporcione bem-estar a seus habitantes. Não por acaso, a base técnica de seus inventos é um material miraculoso chamado “megalon”. O segundo é pragmático e subordinado ao poder do dinheiro, concentrado especialmente na figura do banqueiro Nush Berman (Dustin Hoffman).
Entre Catilina e Cícero balança a jovem Julia (Nathalie Emmanuel), filha do prefeito e apaixonada pelo cientista – reproduzindo, como bem notou o crítico Inácio Araujo, um triângulo análogo ao do clássico mudo Metrópolis (1927).
O paralelo com a obra-prima de Fritz Lang vai além, comportando desvios interessantes. Em Metrópolis, o cientista maluco está a serviço do soberano da cidade; em Megalópolis, ele se bate contra o poder, por uma nova sociedade. No filme de Lang, constrói-se um clone perverso de uma moça virginal para manipular as massas; no de Coppola, uma suposta vestal adolescente (Grace VanderWall) revela-se uma oportunista usada para incriminar o cientista.
As referências a Metrópolis se misturam no filme com todo tipo de citação, de Shakespeare a Frank Sinatra, da ópera de Puccini ao rockabilly de Elvis Presley. Esse caleidoscópio meio aleatório de signos, por mais que envolva sensorialmente o espectador e o incite a fazer conexões e interpretar associações, não obscurece o cotejo central entre os dois impérios, o antigo e o moderno.
Hedonismo e brutalidade
Logo no início do filme, uma típica balada de sexo, drogas e música eletrônica remete às orgias da época do império romano, assim como as lutas de gladiadores reverberam na brutalidade atual do UFC. O hedonismo e o sadismo como signos de decadência. Assim como Fellini, Coppola parece nutrir um misto de fascínio e repulsa por essa cultura pagã em suntuoso declínio.
Do mesmo modo, as intrigas familiares e palacianas da Roma dos césares não parecem muito distantes dos jogos de poder e riqueza que motivam gângsteres contemporâneos. Não é a primeira vez que Coppola trata como épico e ópera o fratricídio intra-Máfia.
Se atentarmos para o oportunista Clodio (Shia LaBeouf), que incita o ressentimento das massas humilhadas com fins políticos autoritários, estaremos perto de perceber o funcionamento do populismo da extrema direita de nossos dias, que elege Trumps e Bolsonaros pelo mundo afora. Ao conectar o passado e o futuro, Megalópolis não deixa de ser uma obra profundamente sintonizada com o presente. Ouso dizer que assumiu uma dolorosa atualidade com a recente e desastrosa eleição norte-americana.
O “resto” é um deslumbramento audiovisual permanente, um espetáculo que une ópera, circo, romance, suspense policial, comédia, ficção científica. Que o espectador não espere discursos “profundos” ou análises históricas acuradas, explicações coerentes, mensagens edificantes. Melhor se deixar levar pelos delírios de um criador em pleno domínio de seu ofício.
Orson Welles disse certa vez que “o cinema é o maior trenzinho elétrico que uma criança já teve”. Aos 85 anos, Coppola ainda se diverte com o seu, sem medo de ser tachado de confuso, de piegas (como quando fez O fundo do coração e Vidas sem rumo) e de superficial. Ele parece ter consciência de que, por mais que seja atravessado por todas as artes e mobilize todas as operações do intelecto, esbarrando na filosofia, na história, na antropologia e na psicanálise, o cinema no fundo é a arte da superfície, puro espetáculo sensorial de feira, prazer sem culpa. Cabe embarcar ou não nesse trem.