Melodramas (ou comédias) sobre personagens idosos sofrendo de Alzheimer ou outros tipos de decrepitude mental não são nada raros. Amor, de Michael Haneke, e Para sempre Alice, de Richard Glatzer e Wash Westmoreland, são exemplos da última década. Mas Meu pai não é bem isso. Mais do que um filme sobre a demência, é uma tentativa de imersão na demência. Em vez de uma observação exterior, pretende ser um olhar de dentro, ou antes, na fronteira incerta entre o fora e o dentro. Por isso é tão perturbador.
O filme, que concorre a meia dúzia de Oscars, está sendo lançado em cinemas do Rio, Brasília e Florianópolis e ao mesmo tempo nas plataformas digitais Now, iTunes e Google Play. Embora rodado em Londres com produção e elenco britânicos, é o primeiro longa-metragem do dramaturgo francês Florian Zeller, adaptando sua premiada peça teatral homônima.
Anthony Hopkins é Anthony, o pai em questão. E aí já há um detalhe instrutivo. O título original é simplesmente The Father. Ao rebatizá-lo de Meu pai, o distribuidor brasileiro sugere a ideia de que a história é narrada do ponto de vista da filha, Anne (a fabulosa Olivia Colman). Mas não é bem assim, como veremos.
Realidade e mundo mental
A primeira cena mostra Anne caminhando por uma ensolarada rua londrina em direção a seu apartamento. Ouvimos na trilha sonora uma ária da ópera Rei Arthur, de Purcell, e só depois que Anne entra em casa e chama o pai sem obter resposta constatamos que era ele que estava imerso na música, com fones de ouvido. Sem saber, estávamos já um pouco dentro da cabeça dele, mediante essa escuta subjetiva.
Todo o restante do filme explorará esse jogo entre o mundo mental de Anthony e a “realidade”, de tal maneira que nunca saberemos com certeza se estamos em um ou na outra. Formam-se quase que dimensões paralelas e conflitantes. Numa delas, Anthony vive em seu apartamento; em outra, no da filha. Numa, a filha é divorciada e está prestes a emigrar para Paris; em outra, ainda é casada. O marido (ou ex) da filha ora se chama Paul, ora James.
Desse modo, é como se a confusão mental do protagonista nos contagiasse, tornando movediço o chão sob nossos pés. Isso só é possível graças não apenas ao roteiro engenhoso e à extrema competência de todos os atores em cena, mas também a detalhes sutis de cenografia, encenação e montagem. O ambiente do amplo apartamento é filmado de maneira a não sabermos se é sempre o mesmo ou se são dois apartamentos parecidos (o dele e o da filha). Pequenas mudanças entre uma tomada e outra – objetos deslocados de lugar, um quadro que desaparece, caixas empilhadas como numa mudança – acentuam a dúvida.
Assim como o espaço, também o tempo se desarranja. Tudo se passa num único dia, num único jantar de frango assado, ou se desdobra ao longo de meses, talvez anos? A desorientação cronológica é um traço frequente na deterioração senil. Não admira que o protagonista tenha obsessão pelo relógio de pulso, como quem recorre a uma âncora. Quando a médica pergunta sua data de nascimento, ele responde sem hesitar: “Sexta-feira, 31 de dezembro de 1937”. A doutora se diverte um pouco com a minúcia: “Sexta-feira?” É, aliás, a mesma data de nascimento de Anthony Hopkins. Piada interna, decerto.
A iluminação suave, as cores sóbrias e frias em tom pastel, os travellings lentos e elegantes, tudo compõe uma atmosfera outonal, melancólica, que o olhar de Anthony Hopkins traduz tão lindamente em algumas cenas, como aquela em que observa, pela janela, um menino desajeitado tentando chutar um saco plástico como se fosse uma bola.
Compêndio de técnicas
Hopkins é um caso à parte. A precisão de seus mínimos gestos e olhares, as mudanças de entonação, a duração dos silêncios, essas coisas todas quase configuram um “excesso de perfeição”, como se ele não fosse um ator, mas um compêndio de técnicas do bem atuar. A todo momento parece estar nos dizendo: “Vejam como sou um grande ator”. (Alguém que não me lembro disse algo parecido sobre Meryl Streep.)
Seja como for, é admirável como ele passa da fragilidade à fúria, da arrogância ao desamparo, em questão de segundos. E, por sortilégios do cinema, nos identificamos com cada um desses cambiantes estados de espírito. Quando todos o querem dócil e resignado, ele se enfurece, como se obedecesse aos versos esplêndidos de Dylan Thomas: “Do not go gentle into that good night./ Rage, rage against the dying of the light”. (Na tradução de Paulo Henriques Britto: “Não entres dócil nessa noite suave,/ E grita, grita, porque a luz se apaga”.)
É Tudo Verdade
Começa nesta quinta-feira, 8 de abril, a 26ª edição do festival de documentários É Tudo Verdade, este ano inteiramente online. Os homenageados desta edição, que vai até o dia 18, são a fotógrafa e documentarista anglo-brasileira Maureen Bisilliat, o documentarista francês Chris Marker e o cineasta moçambicano-luso-brasileiro Ruy Guerra.
Na parte brasileira da programação, alguns dos filmes mais aguardados são Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi, que acompanha de perto os últimos dias de Dilma Rousseff na residência presidencial; A última floresta, de Luiz Bolognesi, mergulho no cotidiano e no imaginário de uma aldeia yanomami; Os arrependidos, de Ricardo Calil e Armando Antenore, sobre cinco guerrilheiros que renegaram publicamente a luta armada e elogiaram a ditadura militar em 1970; e Edna, de Eryk Rocha, em torno de uma mulher que sempre viveu à margem da Transamazônica e registrou num caderno as histórias que testemunhou (ou imaginou) de guerrilhas, desmatamentos e assassinatos.
Merece atenção também Paul Singer, uma utopia militante, de Ugo Giorgetti, sobre a formação e ação intelectual do grande economista e pensador político.